Imagem incômoda/III

A generosidade de Lya Cavalcanti, dispondo-se a ficar com o cavalo de João Brandão, bastaria para dar remate à estória que vamos narrando, se as coisas nesse mundo deslizassem no rumo natural; não deslizam. Só depois que o Brasil inteiro, graças a este e outros órgãos de divulgação, havia tomado conhecimento do presente, é que o distraído JB, revendo o cartão que acompanhara a dádiva, pôs reparo nestas palavras, escritas do outro lado: “Este cavalinho, saído da Cerâmica de Santo Antônio do Porto, é mágico. Move-se à meia-noite e anuncia o que vai acontecer no dia seguinte. Não indagues como e por que, nem contes a ninguém este prodígio; do contrário, ele emudece e te morde.”

Qualquer pessoa que lesse tal coisa não a levaria a sério. Para João, tudo é sério, inclusive o sério, quanto mais um cavalo mágico. Fez boca de siri e aguardou a hora “da meia-noite que apavora”. Não chegou a apavorar, embora faltasse a luz da Light; a luz do entendimento de Brandão, espevitada pela incursão na área do maravilhoso, dava para criar condições de serenidade. E foi nesse ambiente de paz, com a lanterna de pilha funcionando, que a cauda do animal começou a mover-se de modo particular, como se desenhasse letras. João, bom leitor de criptogramas concret/praxistas e documentos oficiais, decifra tudo. Não lhe foi difícil perceber que o cavalo o saudava jubilosamente, com a alegria de ver-se acreditado e consultado. Hoje em dia, ninguém consulta ninguém, sequer o dicionário; o resultado é a guerra no Vietnam, os desquites litigiosos, o indivíduo sair sem guarda-chuva num dia de sol e molhar-se todo, para citar só três exemplos.

Finda a saudação cortês, o cavalo calou-se, isto é, recolheu o movimento do rabo. “E o silêncio amplo e calado, calado fica.” O animal não era desses de sair badalando novidades. João que lhe perguntasse, e responderia. Foi o que nosso amigo concluiu, vendo-o passar da comunicação ao recesso. Então JB falou: “Cavalinho meu, profeta ou o que quer que seja, dize: que farei amanhã de bom ou de mal?”

Prontamente a cauda ondulou e descreveu a resposta: João não faria nada de bom; esqueceria compromissos; fingiria não ver, na mesa do Minhota, alguém que lhe prestara um benefício há anos; sem querer, esmagaria um besouro na praça General Osório; mentiria; assistindo a filme de Sofia Loren, o estuque do teto do cinema lhe cairia em cima. Enfim, tudo errado, feio, penoso, nenhum gesto de grandeza ou felicidade compensatória.

Voltou o cavalo à sua rigidez e João mergulhou em tristeza. Seria assim o dia seguinte? Não poderia evitá-lo, retocá-lo, compô-lo? “Cavalinho meu, ave ou demônio que negrejas (sei lá o que és), dize, dize: posso deixar de viver o dia de amanhã? Me dá um endereço onde eu arranje uma droga que melhore esse negro dia?”

“Isso eu não posso – abanou a cauda – a Saúde Pública proíbe. Mas sossega: do esquecimento dos compromissos não virá mal ao mundo nem a ti; no Brasil isto nem se nota. O homem do restaurante estará entretido com a bacalhoada e não perceberá tua ingratidão; nem poderá perceber, pois não te prestou serviço algum, tu é que o confundiste com a cara do outro. O besouro estava com as asas partidas e não poderia viver. As mentiras... Ora, as mentiras... O estuque não te matará; apenas um susto. No fundo, teu dia será indiferente, ou neutro. Vai dormir.”

Assim falou a cauda, e o resto será contado a seu tempo.

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