Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de27/11/1978.

Meio-dia, sol a pino. O verão chegou com disposições brutais. Tenho um compromisso social e já estou atrasado. Visto um uniforme de ginasta e alguns minutos depois estou andando dentro do forno em que se crestam estes últimos dias de novembro. Estou aborrecido com a deterioração da qualidade de vida em todos os níveis. Não há árvores por onde ando. Os edifícios se sucedem, duros, feios, sem marquise. Os carros estacionados na calçada dificultam a passagem dos homens. O movimento nas pistas — ônibus, taxis, carros particulares — é resfolegante, nervoso, desesperador. O asfalto amolece, parece uma esteira negra de goma de mascar. Se alguém fizer neste momento uma manobra infeliz ao volante, ocasionando uma colisão de veículos, haverá discussões histéricas de pessoas suadas e agressivas. Caso algum dos litigantes traga no porta-luvas uma arma, é bem capaz de tombar algum carioca assassinado pelo calor.

Entro numa loja para fazer uma reclamação. Comprei um relógio de pulso. Custou caro, é automático, não é preciso dar corda. Marca a hora, os segundos, e num quadradinho, informa o dia do mês. Não gosto de relógios de pulso, mas preciso estar de olho nos minutos a fim de seguir uma dieta de superalimentação. Nos dois primeiros dias, o relógio adiantou dois minutos. Hoje, cinco dias depois, está cinco minutos adiantado. Nessa progressão, chegarei a fevereiro em princípios de dezembro...

Entro na loja e faço a reclamação. A máquina veio da fábrica com garantia de um ano de funcionamento impecável. Já veio enguiçada. O dono da loja abre uma discussão. Exponho meus argumentos. Ele tergiversa, me confunde com jogos de palavras. Fala na fábrica, nos critérios de reclamação e conserto estabelecidos pela fábrica. Perco a paciência. Quase vamos às vias de fato. Deixo lá o relógio. Dentro de oito dias me será devolvido. Em vão tentei explicar-lhe que o certo seria me dar um relógio novo, ou então me devolver o dinheiro, porquanto o objeto que comprei já veio com defeito de fábrica. Ele não quer conversa. Está fazendo muito calor. Escreve qualquer coisa num cartão de visitas e eu finjo que aquele documento tem algum valor legal. Não tem nenhum. Vou-me embora chateado. Dentro de oito dias (se não for dentro de oito semanas), receberei de volta um relógio que, comprado novo em folha, me será devolvido como objeto de segunda mão. O homem que fez isso comigo é um pequeno comerciante, artesão antigo, conhecidíssimo no bairro. Tem uma oficina nos fundos da loja. Certamente, não compra relógios estragados. Esse relógio que me vendeu, ele sabia, não funcionaria direito. Agora, irá consertá-lo em sua oficina, mas eu devo fingir que a geringonça foi enviada à fábrica e ali reconstruída. Os pequenos comerciantes e os pequenos artesãos perderam o amor à sua profissão. Estamos todos corrompidos. Faz um calor dos diabos.

Sigo em frente. Numa esquina tórrida, na qual o vapor que sobe do chão flutua no ar, deformando a paisagem de pedra e cal, o sol se põe a reger um concerto dissonante para cigarras, amolador de facas, pneus rangedores, britadeiras elétricas e buzinas. Que posso fazer? O verão chegou e não é a Sala Cecília Meireles.

Atravesso um quarteirão exemplar: lado a lado, um prédio está sendo demolido e outro construído. Entre os para-lamas dos automóveis e os muros residenciais, abre-se um espaço que mal dá para esgueirar o corpo, e no qual um cachorro depositou seus excrementos. Para vencer tais obstáculos, sou forçado a improvisar uma grotesca ginástica. Do outro lado do exíguo corredor, que deveria ser uma calçada larga, uma babá está engarrafada com seu carrinho de bebê. Ela não pode passar por ali, em sentido contrário ao da minha caminhada, e não pode desviar seu miniveículo, optando pela passagem no asfalto. O cruzamento ali é muito perigoso. Não há guardas nem sinais, e muito menos boa vontade por parte dos motoristas. Ultrapasso a babá e me desinteresso pelo seu problema. Tranquilizo minha consciência imaginando que seu patrão, o pai do bebê, deve ter deixado o próprio carro estacionado da mesma forma, em outro local, atravancando a via pública e infligindo sofrimento desnecessário aos filhos alheios. Ninguém compreende que o aborrecimento que causa aos outros lhe será devolvido da mesma maneira. A cidade não parou: está funcionando em alta velocidade, feito o relógio que acabo de devolver ao pequeno e outrora honrado comerciante. Honrado no sentido de que, outrora, amava o seu pequeno negócio e se recolhia com satisfação à sua pequena oficina, onde desmontava relógios com calma e perícia, refrescado pela brisa de um ventilador giratório. Hoje ele pensa exclusivamente em dinheiro e em vender máquinas danificadas como sendo máquinas perfeitas. Coitado! Ele não tem culpa. Ninguém tem culpa. Está fazendo um calor dos infernos.

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