Depois dos sensacionais bilhetinhos, Jânio Quadros renunciava. Mané Garrincha trouxe do Chile a Copa do Mundo, que não serviu de lastro contra o esfarelamento do valor monetário. Os militares entraram em campo e pouco depois o impossível acontecia: Lacerda e Jango tentavam uma frente ampla.
Combates no Oriente Médio, agitações estudantis em todo o mundo, violências policiais, terrorismo, fome. Foi nessa cultura decomposta que deu flor o humorismo de Stanislaw Ponte Preta. Ele morreu na primeira hora de 30 de setembro de 1968, no mesmo ano em que eram assassinados Robert Kennedy e Martin Luther King.
Por que do estrume mortal daquela época floriu a graça de Sérgio Porto? Possivelmente porque nos desastres históricos mais brutais é que a frivolidade mais se assanha, chocando-se sofrimento e besteira. A champanhota do café-society fazia bojudo contraste com os esqueletos de Biafra; a efervescência erótica tornava mais patética a carne humana incendiada no Vietnã. Os traseiros se retorciam no twist, a minissaia era mais discutida que Marx ou Marcuse.
O forte de Stanislaw era extrair humorismo de fatos, de notícias de imprensa. Seu nome todo será Sérgio Marcos Rangel Porto. Nasceu na rua Leopoldo Miguez, e aí continuou morando depois que a casa foi substituída por um edifício. Menino de peladas na praia, pegava no gol e tinha o apelido de Bolão. Por chutar bola dentro da sala de aula, foi expulso do Colégio Mallet Soares, onde fez o primário. Mais taludo, sempre no gol, foi várias vezes campeão de areia, ao lado de Heleno de Freitas, Sandro Moreira, João Saldanha, três botafoguenses de camisa e temperamento. Mas Sérgio sempre foi do Fluminense, onde jogou basquete e voleibol. Em seus últimos anos comparecia ao Maracanã nos jogos do tricolor. Só durante os 90 minutos da partida do seu time (ou do selecionado brasileiro) ele perdia totalmente a graça, rosto afogueado e unha do indicador entre os dentes.
Estudante de arquitetura não passou do terceiro ano. Entrou para o Banco do Brasil e começou a beliscar no jornalismo, escrevendo crítica de cinema no Jornal do Povo, onde ficava atento às piadas do Barão de Itararé.
Eu o conheci ainda muito mais bancário que jornalista, quando ele escrevia crônicas sobre jazz na revista Sombra, um mensário grã-fino, no qual Lúcio Rangel fazia milagres para injetar inteligência.
Era no tempo da gravata, dos sapatos lustrosos, dos cabelos arrumadinhos. Sérgio era impecável na sua aparência e só os íntimos o conheciam por dentro; e por dentro dele era simples: uma ágil comicidade de raciocínio e uma pronta sensibilidade diante de todas as coisas que merecem o desgaste do afeto. Anos mais tarde, Sérgio me diria queixoso dentro dum avião: “O diabo é que pensam que sou um cínico e ninguém acredita que sou um sentimentalão”.
Éramos um bando de pedestres, forçados a ficar na cidade sem condução depois do trabalho. Sentávamos praça num bar da Esplanada do Castelo até que o uísque ali servido passava a duvidoso, e de duvidoso a intolerável. Mudávamos de bar. Foi assim que percorremos o Pardellas, o Grande Ponto, o Villariño, o Serrador, o Juca’s Bar. Com o primeiro desafogo do transporte, depois de uma passada pelo Recreio Velho, íamos para os bares mais cômodos de Copacabana, o Maxim’s, o Michel, o Farolito. Ninguém pensava em apartamento próprio e as noites acabavam no Vogue, onde as moças e jovens senhoras eram lindíssimas, limpíssimas e alienadíssimas.
Esse roteiro foi cursado praticamente por toda uma geração conhecida: Lúcio Rangel, Ari Barroso, Antônio Maria, Fernando Lobo, Araci de Almeida, Silvio Caldas, Dolores Duran, José Lins do Rego, Rubem Braga, Rosário Fusco, Simeão Leal, João Condé, Vinicius de Moraes, Flávio de Aquino, Luís Jatobá, Lamartine Babo, Santa Rosa, Augusto Rodrigues, Haroldo e Evaldo Rui, Darwin Brandão, José Sanz e, naturalmente, Di Cavalcanti...
Não se falava de arte ou de literatura, mas de música popular, do samba e do jazz negro de New Orleans. As prodigiosas memórias de Sérgio e Lúcio nos forneciam todos os subsídios históricos de que precisássemos, pois a turma cantava mais do que falava.
Uma vez Vinicius chegou depois de longa temporada diplomática nos Estados Unidos. Havia batido um longo, longo, papo com Louis Armstrong. No bar do Michel, nas primeiras horas da noite, ainda portanto com um pouco de combustível na cuca, não demorou a formar-se a ilustre orquestra. Instrumentos invisíveis foram sendo distribuídos entre Sérgio, Vinicius, Fernando Sabino, José Sanz, Lúcio Rangel, Silvio Túlio Cardoso. Eram o saxofone, o piano, o contrabaixo, o trombone, a bateria, o trompete.
Não me deram nada e tive que ficar de espectador no alto dum tamborete. Mas valeu a pena. A orquestra tocou por mais de duas horas, indiferente às mulheres que entravam e até mesmo esquecida de renovar os copos. A certa altura Sérgio pediu a Vinicius que trocassem de instrumentos, ele exigia o piano para aquela peça de James P. Johnson, ficasse o poeta com o saxofone. Legal. Só que os dois, compenetrados, trocaram de lugar efetivamente, como se diante da cadeira de Vinicius estivessem de fato as teclas dum piano. Foi a jam session mais surrealista da história do jazz.
Vinte anos! De que morreu Sérgio Porto? Todos os seus amigos sempre disseram a mesma coisa: do coração e do trabalho.
Era um monstro para trabalhar esse gozador da vida alheia, esse homem de trânsito livre entre as coisas gratuitas da existência, e que, poucos meses antes de morrer, gemia de pesar ao ter de deixar um quarto de hotel em Brasília, dizendo-me que gostaria de ficar descansando ali pelo menos um mês.
Lembro-me quando chegamos a Buenos Aires em 1959, no dia do jogo dramático entre o Brasil e o Uruguai. Vi Sérgio em várias atitudes diferentes naquele mesmo dia: fazendo uma piada para cima do médico argentino que lhe pediu o atestado de vacina (ele apertou a mão do doutor, muito sério, dizendo “vacunación para usted también”); durante o jogo deu um empurrão no peito do argentino que chamava os brasileiros de covardes (por causa do jogador Chinesinho, que saiu correndo na hora do pau); chorou quando Paulo Valentim fez o terceiro gol; riu-se às gargalhadas quando Garrincha passou indiferente entre os torcedores uruguaios furiosos, e entrou no ônibus com um sanduíche enorme na boca e outro na mão; conversou longamente comigo sobre suas aflições sentimentais; e ceou com grande entusiasmo.