12 de agosto, 1949. Partimos de Paris no automóvel do pintor: Cícero Dias, o artista português Antônio da Costa, o falecido Rubem Navarra e eu. Todas as pensões e hotéis de todas as cidades do percurso, superlotados. Expulsos de um hotel, onde alugamos afinal quatro poltronas, porque Cícero, ao surpreender toda a família hoteleira, desde um macróbio até as crianças, a esfregar furiosamente o assoalho e os móveis, é tomado de irresistível acesso de riso; a princípio, eles também riram, mas ficaram sérios de repente e nos apontaram o caminho da rua. Expulsos de novo ao amanhecer, em Grenoble, porque Cícero vai perguntar exatamente à proprietária de um café se o café ao lado é melhor. Seguimos. Sem licença colhemos uvas brancas em um castelo do Marquês de Sade.

Na fronteira, um coro de crianças praticava harmonia sobre a relva, enquanto a polícia apreendia um contrabando de pregos. Enquanto jantamos na Trattoria della Maria, em Génova, quebram a vidraça do carro e nos roubam uma valise. Não há na cidade um único leito honesto desocupado, e temos de dormir o sono da inocência num prostíbulo centenário, onde um inglês bêbedo lê, de cima da mesa, poemas de Byron às festivas meretrizes.

Azul pintado de azul à beira-mar, o blue Mediterranean da baía de Spezzia, vida, paixão e morte do poeta Shelley. Ao entardecer, todos os jovens de uma aldeia seguem de bicicleta para a aldeia mais próxima, e assim por diante. É ferragosto (15 de agosto) quando entramos em Siena, enrubescida e arroxeada para a festa do pálio. Abro a gramática adquirida a caminho e leio: Rivideto il mio dolce paese di Toscana, là dove é più bello, più sereno, più consolato e consolante, in Valdarno. O automóvel felizmente enguiça, e vamos beber vinho (muito) com os camponeses fraternais, que se queixam da falta de trabalho e perguntam sobre o Brasil. Ao sair de Arezzo, enquanto Cícero buzina, fico meio pateta, ao comprar cigarros da mais linda menina-e-moça que meus olhos viram. A gramática fala a pura verdade: Come strillavano le cicale nella gran calura del solleone.

Grã-finos brasileiros, num museu de Florença, asseguram que Rodin não foi um grande escultor. Numa igreja de San Gemignano, pedimos uma informaçãozinha a uma velha, e ouvimos palestra completa sobre a Idade Média. Bailavam ao luar em Volterra. Angela Benedetta, lucanda em Tarquinia, cultiva espessos bigodes pretos. Acredita Cícero que as camas voam e outros milagres podem realmente acontecer, mas só em épocas muito confusas.

Um calor danado em Roma. Nápoles em farrapos. Depois de apanhar o americano, o guia passava por uma praça cheia de rapazes; quem desse o lance mais alto arrematava o turista.

Seria doce viver em Paestum; ou já ter vivido e morrido em Pompéia. Mas agora almoçamos na montanha calabresa, enquanto indivíduos mal-encarados rodeiam o automóvel. E não temos um canivete. Interrompemos a refeição e partimos, o pneu estoura daí a dois quilômetros, enfiaram-lhe um prego. Cícero confessa que nunca trocou um pneu em sua vida, eu também não, mas nessa hora não é preciso saber.

Abismos de Cosenza; primeiras notícias de Giuliano: os banditti acabam de explodir um caminhão com oito carabinieri. Cruzamos o estreito de Messina. No Albergo Etneo, em Catânia, Cícero me acorda para mostrar que os quartos todos se comunicavam através de um corredor externo: “veja também para que depois não me chamem de mentiroso”.

O truque de escamotear o automóvel, para não pagar muito caro pela comida, às vezes dá certo; mas uma gorda simpática, em Licata, descobre o carro e se vinga com uma conta catastrófica pelo pernoite; preciso arrastar Cicero pelo braço, porque não parava de rir.

Diante do carro americano, os camponeses gritam com ameaça e sarcasmo: “Giuliano”! Nessuno sa il proprio destino, anuncia o cartaz de um supercinema. Ruínas de Agrigento, terra árida, informações terroristas em Selinunte. Quando a estrada se bifurca, Cícero indaga qual caminho passa pelo domínio dos bandidos; e é por ele que toca.

Na catacumba de um convento de capuchinhos, em Palermo, há oito mil cadáveres expostos, mumificados devido a certas condições do local, bispos, senadores, catedráticos, moças, crianças, mortos há 400 anos. Mas o pintor acha isso engraçadíssimo, sobretudo quando o frade nos diz que a morte não tem graça, e preferia voltar logo para cima a fim de ver e apalpar la bella machina (o Chevrolet). Dentro de uma caixa, um sinistro e peludo general de Garibaldi, envolto num lençol, colocado ali, entre os cadáveres antigos, por influência política da família.

Subimos a montanha para espiar a incomparável Taormina, e permanecemos três dias no hotel de um velho fascista ranheta, detestado pela população com a maior sinceridade. Pela primeira e última vez em minha vida, resolvo pintar. Cícero passa horas a ver o Etna fumando; acima de Piero della Francesca, foi este o espetáculo que mais o cativou na viagem. Depois de “aliviar” o antipático hoteleiro de três plantas ornamentais, começamos a regressar pelo mesmo itinerário, e nos separamos em Roma. Após um dia inteiro enlatado numa cabine de trem, chego a Veneza, sujo, só, triste, exausto, esfomeado e feliz, amando e sofrendo a Itália, indescritivelmente. Il treno, col quale arrivammo, era in ritardo.

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