Fonte: Maria Julieta Drummond de Andrade; (Coleção Melhores Crônicas). Seleção e prefácio de Marcos Pasche, Global, 2012, pp.237-239. Publicada, anteriormente, em Um buquê de alcachofras, José Olympio, 1980.

De um sétimo andar o dia avança, e vem pesado como um fardo. Nenhum brilho, apenas luminosidade seca, e tão forte que os olhos mal podem suportá-la. A sala muda de tom: todos pressentem ou percebem o que está a ponto de acontecer, e acontece: chove. Escureceu tanto – e a noite demora ainda – que se acendem as luzes, mas aí já não é dia, porque onde penetra eletricidade penetrou também a noção noturna, de tempo que foi claro e se perdeu. As pessoas se movem lentamente, em sons abafados (os móveis, os tapetes tornam-se quase pretos); são 4h30 da tarde, mas tudo no escritório é artificial.

A princípio grossos e espaçados, os pingos enviesam, afinam-se, multiplicam-se. Nas janelas, os vidros vão se derretendo e logo se incorporam à própria chuva, sem consis- tência e contudo protetores. Um grande cinzento substitui o céu, que está desnudo, pois nele já não voa nada: só um avião passa de repente, atrasado, e desaparece. A impressão é de abandono, de extrema solidão, porque chove, chove, e a vida se escondeu, ou pelo menos se disfarçou de algum modo. Outros edifícios em torno, do concreto inicial, conservam agora apenas a solidez, já que os ângulos e as cores se diluíram, cedendo lugar a objetos fechados, úmidos, contra os quais a chuva, sem misericórdia, bate rudemente.

Venta um pouco. A água muda de direção, inclina-se imperceptível, para a esquerda. Dentro, o ar é cada vez mais tépido, sufocante. Algumas pessoas, vindas do desabrigo, começam a trazer nas roupas e sapatos molhados um cheiro de mofo, agora mais forte no ambiente recluso, e logo insuportável. Há de súbito uma precisão geral de liberdade, de atmosfera lavada, livre dessa fumaça ruim, em que se misturam suor, guarda-chuvas e uma série de outras substâncias e objetos, até então inodoros, que a partir daí transformam, emprestando ao conjunto características que o deturpam ainda mais. Assim, eis que as pontas de cigarros semiapagadas recendem, soltam-se dos livros e pastas indícios de cola, identificam-se os cheiros particulares da madeira, das cortinas, do bolor, detritos de borracha. Pela porta da varanda, entreaberta um instante, chega uma onda fresquíssima em meio a vários pingos; o interior se renova, lavagem rápida, porém decisiva, feita de vento e olor a terra.

Gotas espalham-se pela varanda: os ladrilhos vermelhos do chão brilham; num canto, à direita, o sujo – que se distribuía igualmente pelo pequeno espaço e agora se acumula, em destaque. Vê-se através das vidraças o desenho dos fios d'água, longos e oblíquos, ligando uma parte confusa, que não se distingue bem, ao mosaico, onde se desfazem por meio de um pequeno salto ou pirueta, que os faz subir alguns milímetros depois de haver tocado o chão, para bar de novo, à moda de um repuxo. Isto muito ligeiramente, sem descanso, aqui, ali, depressa, num estalar monótono, ritmado, compasso que varia se os pingos são mais ou menos espessos. Entre todos um se destaca, escoando, metálico, de um cano na parede.

Agora a rua, separada do espectador pelo retângulo isolante da vidraça. E bichos mínimos (serão?) arriscam-se lá embaixo: correm ou deslizam, parecendo divertir-se em suportar sobre os ombros esta água imensa. Esgueiram-se, velozes, junto às casas e se detêm sob as marquises. O guarda-chuva lhes encobre a parte superior: vistos assim, de cima, não são homens e semelham brinquedos mecânicos, talvez aracnídeos. Até os automóveis tomam a forma de insetos coloridos.

Chove ainda. O complicado arabesco de água despencando já deixou de ser belo: é estranho, incolor. As árvores saciam-se, limpam-se e curvam-se, fatigadas. Chove há duas horas, sem intervalo. Confundindo-se com a penumbra, a noite se completa, despercebida. Agora faz frio. A sala, até então imune ao que a rodeia do lado de fora, é no entanto permeável à umidade – e isto a põe de novo em contato com o mundo, restabelecendo-se nas pessoas que nela se abrigaram a condição humana, que parecia a ponto de esfumar-se.

Vencidos os sete andares, na rua – verifica-se – nada escapou à ação da água. O movimento é intenso. Os fios caem finos, exatos. Em cada poste, trêmulo através das gotas, formou-se um halo de névoa, em que a luz se deposita, vacilante. Não se distinguem os rostos, atentos, mas encobertos por chapéus, lenços ou simplesmente pela chuva. Ainda assim há transeuntes que passam bem-humorados, e as risadas se perdem na confusão. Carros espirram água, indistintamente, chiando as rodas de encontro ao asfalto. De vez em quando reluz no chão um vestígio de óleo: forma-se um bizarro arco-íris, em que predominam o roxo e o verde-azulado de uma asa de borboleta. O céu assumiu uma tonalidade escura, que não é negra, mas parda, cheia de vapor prestes a dissolver-se. As árvores são fantasmas que não lembram o antigo ser vegetal.

Até onde o olhar alcança, percebe-se a líquida cortina, de agudos movimentos, ora dura, ora mais suave, às vezes rala... quase extinta... todavia se reconstrói. Em tudo existe a chuva – e é como se fosse para sempre.

Pela noite adentro, chove.

maria-julieta-drummond-de-andrade