31 maio 1981

O poeta e os olhos da moça

Periódico
Revista Nacional

(Publicada, também, nas edições de 16/03/1980 e de 6/12/1987). Outras publicações: O Fluminense, de set/1978, e de 12/04/1981; e Ele Ela, de abr/1980. Com os títulos: “Poeta”, Folha da Tarde, de 28/04/1952; Manchete, de 21/11/1953, Correio da Manhã, de 10/04/1954; "O coração", Diário da Noite (Recife), de 8/02/1960, e Correio da Manhã, de 10/04/1952; e "O coração do poeta", O Globo, de 3/02/1960, e Diário de Notícias, de 30/03/1966.

Conversa vai, conversa vem, eu disse um nome de mulher. O poeta me confessou que há muitos, muitos anos, tem vontade de fazer um poema sobre uma história que ele teve com essa mulher — a que chamaremos Maria. Espanto-me: não sabia que o poeta tinha tido alguma história com Maria.

Ele ri:

— “Não pense que eu tive um caso com ela. Foi apenas uma impressão minha, foi uma coisa tão subjetiva — mas inesquecível. Tanto assim que vivo perseguido pela vontade de escrever um poema sobre aquele momento. Isso aconteceu há uns dez anos, e até hoje não me senti capaz de transformar aquele instante em um poema. Pode ser que esse poema venha de repente, pronto do começo ao fim; isso já tem me acontecido. Mas vou contar a história. Eu estava no Praia Bar, ali no Flamengo, sozinho, com uma tristeza danada, por causa de outra mulher. Estava desesperado, mas principalmente triste, com uma tristeza sem fundo nem remédio.

Em certo momento paguei a conta e saí. Quando vou pisando na calçada me encontro com Maria, que vem de braço dado com o noivo. Meus olhos entraram diretamente nos seus. Meus olhos, com toda a minha tristeza, toda a minha alma desgraçada, entraram de repente nos seus, mergulharam completamente neles. Ela se deteve um instante — eu só via aqueles olhos verdes — e me recebeu como se fosse uma piscina. Tenho a certeza de que ela recebeu a minha alma ferida, de homem desprezado, dentro da sua alma distraída e feliz de moça que passeia com o noivo. Cumprimentei os dois vagamente, segui pela rua tonto, mas apaziguado”.

Contei essa história do poeta a Maria, muitos anos depois. Ela beliscou o beiço, tentando se lembrar: “No Praia Bar? Quando foi? Não me lembro...”.

E ficou me olhando admirada, com seus olhos de piscina.

*

Foi há muito tempo que escrevi esta crônica, há quase 30 anos. Na ocasião eu não quis dizer o nome dos personagens. Hoje ambos estão mortos. O poeta era Manuel Bandeira; a moça Maria, noiva, chamava-se Clarice Lispector.

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