Fonte: Maria Julieta Drummond de Andrade; (Coleção Melhores Crônicas). Seleção e prefácio de Marcos Pasche. Global, 2012, pp.108-110. Publicada, anteriormente, em O valor da vida, Nova Fronteira, 1982.
Acordou sem sono, olhou o relógio, achou um desperdício levantar-se cedo justamente quando podia ficar na cama até tarde, sem pressa nem remorso: domingo de agosto, 9 da manhã. Todos dormiam em sua casa e com certeza em quase todos os apartamentos do edifício. Só a velha senhora doente, do sexto andar, estaria dando voltas, como sempre, na cadeira de rodas, do quarto ao living, do living ao quarto, aflita, lamentando-se em voz grossa, reclamando da enfermeira. Também o casal idoso do oitavo (ele tão surdo, ela tão encolhidinha) devia estar sentado em frente à janela, tomando chimarrão em silêncio. Havia outros velhos no prédio, gente muito moça com filhos pequenos, mas até os garotos e bebês estavam inteiramente quietos. Não ouvia nada, nem o ruído dos aviões que perfuram as nuvens constantemente, de segunda a sábado. Por mais luminoso que seja (concluiu), um domingo de inverno em Buenos Aires nada tem a ver com o mesmo domingo no Rio, onde o sol, a temperatura suave, o hábito da praia tornam o povo madrugador. Aqui todos dormem.
Levantou-se, foi ao banheiro, procurou o jornal debaixo da porta da cozinha: não tinha chegado. Sentia-se bem-disposta, não se impacientou. Enfiou um suéter e uns jeans sobre o pijama, pegou a japona que está sempre pendurada no cabide de pé, na entrada. Beleza de cabide, com os braços de madeira torneada formando uma corola no alto: lembra um arabesco, um passo de balé subitamente imobilizado, a síntese de uma árvore entrevista em sonhos. Pensou: um cabide tão harmonioso, prestando serviços na casa há tantos anos – e esquecido. Fora necessário, não um domingo qualquer, mas este, especial, para ela tomar consciência de como gostava daquele cabide, do papel estético e funcional que desempenhava ali desde que o descobrira, sujo, meio desarmado, num antiquário. Cobiçara-o com tamanho afinco, que durante vários meses passara diante da loja, no mínimo uma vez por semana, para observá-lo de longe, imaginando-o, limpo e restaurado, em seu apartamento – e todas as vezes tremera, receando que outro comprador o tivesse levado. Prolongava assim a espera, adiava o momento da posse. Quando o trouxe, o encantamento foi menor que a expectativa. O cabide se integrou facilmente no hall, entre plantas e objetos de bronze tanto e com tal naturalidade, que era como se sempre tivesse sido colocado ali. Salvo algumas visitas, ninguém mais reparava nele. Mas nesse domingo, ao tomar o elevador e até chegar ao térreo, concentrou-se na imagem do cabide com um carinho agradecido, quase palpável.
Fazia frio e o sol brilhava com delicadeza. Abotoou a japona, levantou a gola para proteger o rosto, sobretudo o nariz gelado. Atravessou a rua fora do sinal (eram tão poucos os carros que passavam), foi até a banca da esquina, comprou três matutinos, sorriu para o jornaleiro. Reparou então em como aquela manhã era particular, diversa de todas as demais. As ruas, a cidade variam constantemente, exibem rostos diferentes, cedo, ao meio-dia, quando a noitinha chega, nos feriados, domingo à noite. Todos sabem (e não sabem) disso, e estão acostumados à agitação dos dias úteis, inclusive à sorte de fúria que se apodera de alguns bairros, das 11 à uma, à medida que o sábado avança. E quem pode permanecer insensível ao claro ar da madrugada, quando só os operários e os homens insones passam, de mãos no bolso, quando a maioria dos ônibus e automóveis ainda não saiu das garagens e a atmosfera não foi conspurcada pela fumaça, pela respiração coletiva, pela ansiedade?
Fixou-se no jeito exato e intransferível de um domingo de agosto, às 9h30: não se parece com a cidade das 6h00, das 7h00, das 10h00. Há nele uma espécie de jubilosa serenidade, qualquer coisa como a sonata número oito em lá menor de Mozart, talvez. Sentiu que o seu corpo se enrijecia sob o ventinho agudo, mas era um enrijecimento saudável, de quem está vivo e em ebulição. Olhou para um lado, para o outro, viu as lojas e edifícios vazios, despojados da moldura de gente e do barulho que lhes modificam as feições. Teve vontade de observar cada fachada, cada varanda, cada janela, mas desistiu. O frio, o sol: mistura perfeita. Atravessou a rua, e parou diante da porta do seu edifício: nunca reparara nela assim, sob aquele ângulo de luz que lhe alterava (ou restituía) o aspecto primeiro.
Dentro de si, uma sensação agradável, espécie de prazer incipiente começou a crescer, foi ficando... espesso? isso: cada vez mais sólido, foi se espalhando, tomando a forma do seu corpo, enchendo-lhe o peito, chegando à ponta dos dedos, recheando as coxas, a barriga, incrustando-se nos tornozelos. Um prazer igual ao seu contorno físico, molde idêntico. Por fora e por dentro, toda ela era um binômio matinal, vibrando pela simples alegria de existir. Teve a convicção de estar vivendo um desses raros instantes de felicidade completa, privilégio de poucos em circunstâncias preciosas, na fusão amorosa, às vezes, em certos relâmpagos que escapam. Fulguração. Preferiu não prolongá-la. Suspirou profundamente, sabendo que a respiração subia do seu fígado, do cérebro, do pensamento mais recôndito, de sua alma. Olhou mais uma vez a rua: 9h35 de um domingo de agosto. Abriu a porta e entrou.
No quarto, tirou a roupa e, de pijama, deitou-se para ler os jornais. Aí o domingo ficou igual a todos os domingos.