Fonte: Maria Julieta Drummond de Andrade; (Coleção Melhores Crônicas).Seleção e prefácio de Marcos Pasche, Global, 2012, pp.85-88. Publicada, anteriormente, em O valor da vida, Nova Fronteira, 1982.

Finíssima, elegante, bonitona, rica, bem casada, impecável anfitriã. Filhos saudáveis, profissionais de sucesso; os netos, florescendo. Tudo quase perfeito na vida dessa senhora batizada com nome de princesa. Quase, porque Dona Leopoldina, que possuía todas as prendas domésticas, além de bordar tapetes capazes de valorizar qualquer parede ou assoalho, tinha uma frustração. Uma só, mas tão aguda, que de vez em quando lhe perturbava a sesta ou o pôquer dos sábados: cozinheira exímia dos dias de festa, elogiada unanimemente pela família e visitantes, nunca pudera fazer uma boa massa folhada. Provara receitas nacionais e estrangeiras, pedira conselhos às primas, gastara quilos de manteiga da melhor espécie – nada: a massa virava pedra, se desfazia antes da hora, negava-se a ser trabalhada e, incomível, desaparecia invariavelmente na lixeira. Dona Leopoldina suportava em silêncio a humilhação e, jurando nunca mais mexer com aquilo, procurava esquecer o assunto. A ideia fixa voltava, porém sonho inexequível –, e acenava para o seu pensamento, para a sua fantasia, esquiva, de longe. Dona Leopoldina a persegui-la, querendo conquistá-la, dominá-la, torturada, impotente.

– Ah – cismava na solidão, pudesse eu preparar um vol-au-vent de mariscos para o jantar do dia 19. Seria a melhor prova de amor que eu daria a César. Nesses 35 anos de casamento feliz... Enviuvarei sem realizar minha mais funda aspiração?

Quando o marido se aposentou, adquiriram o costume de ir à Europa uma vez por ano. Dona Leopoldina conhecia de cor todos os museus, comprava mimos de luxo para a parentela e renovava o guarda-roupa sem muito entusiasmo, porque o que queria mesmo era saborear com deleite e rancor, numa confeitariazinha antiga de Viena, aqueles palmiers deliciosíssimos...

A massa folhada virou obsessão, e o marido começou a preocupar-se. Tanto que, num domingo de tédio, ao percorrer minuciosamente as páginas classificadas do jornal favorito, recortou um anúncio que lhe abrasara o carinho conjugal:

– Poldi (era o apelido que empregava nos momentos de exaltação), venha ver o que encontrei! – e estendeu o pedacinho de papel, onde a dama, comovida, leu em letras maiúsculas:

“APRENDA A FAZER A MELHOR MASSA FOLHADA DO MUNDO EM APENAS OITO AULAS.”

Logo que o motorista chegou na segunda-feira, Dona Leopoldina saiu disparando para o endereço indicado. Era um apartamento de categoria, que algum arquiteto engenhoso transformara em cozinha gigantesca, o fogão e as pias embutidos em balcão de napa alvíssima e sintética; ao redor, cadeiras e mesinhas de vime envernizado para as alunas.

– Deus foi generoso comigo – rezou Dona Leopoldina. Na próxima viagem não deixarei de visitar nenhuma catedral. Inscreveu-se sem hesitação no curso: Cr$ 13.000, 5.000 de matrícula. Pouco mais de Cr$ 2.000 por aula – que barato! O prazer de tocar, sentir, apreender intimamente a divina massa tem preço?

O curso começava 15 dias depois, e foram essas as duas semanas mais lentas da vida de Dona Leopoldina. Na véspera, quando ela, até então avó exemplar, descuidava os netos na varanda, toda voltada para a expectativa da manhã seguinte, ouviu um grito em tom diferente:

– Poldi!

Saiu correndo e encontrou o marido caído no chão do banheiro. Desmaio, vertigem, enfarte? Na confusão, a família transportou-o para o Pronto-Cor, onde César ficou em observação. Dona Leopoldina, que adorava o companheiro, chorava com tristeza contida; não arredou o pé dali até o marido ter alta. Quando percebeu, a primeira aula já havia passado, há dias. Sentiu um longo desconsolo, mas, ao beijar César convalescente, achou que tudo valera a pena.

Na outra semana foi à segunda aula, e qual não é o seu desengano, ao comprovar que, como as demais alunas já haviam aprendido, na primeira, a fazer massa folhada, o menu era: bolo de ostras sem coentro, arroz com pimentão e pudim de melancia. Dona Leopoldina esqueceu-se da apurada educação que recebera no Colégio Des Oiseaux e invectivou a professora com tamanha ênfase e irritação, que esta, atemorizada, levou-a para perto de um fogãozinho mais modesto, escondido no quarto dos fundos, e ali sussurrou-lhe que o verdadeiro segredo da boa massa folhada consistia em prepará-la com uma banha especial, fabricada em São José dos Campos e conhecida exclusivamente por alguns privilegiados. Como a aluna continuasse fora de si, Mme. Croissant prontificou-se a vender-lhe por Cr$ 2.500 um pacotinho de Folharíssima.

Dona Leopoldina voltou para casa às carreiras e, sem dar explicações a Geralda, empregada da vida inteira, trancou-se na cozinha. Quando, com todas as dobras e requintes, a massa ficou pronta, telefonou para os filhos, vitoriosa:

– Hoje à noite festejamos o restabelecimento do pai! Este, na cadeira de rodas, foi conduzido à cabeceira da mesa. Como primeiro prato – que perfeição! – o vol-au-vent tão almejado. O segundo: filé-mignon recoberto por uma capa da mais deleitável massa folhada. Bolinhos da mesma massa, com geleia de cereja, à sobremesa. Depois do café, todos emudeceram quando Geralda entrou com uma bandeja repleta de palmiers dourados. Ouviu-se apenas um gemido entrecortado:

–Poldi... – e César, exausto, despediu-se para sempre da massa folhada.

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