Fonte: Coleção Melhores Crônicas: Maria Julieta Drummond de Andrade.  Seleção e prefácio de Marcos Pasche. Global, 2012,  pp.289-291. Publicada no livro O valor da vida, 1982.

Tantas vezes deixo transparecer meu desconcerto e envolvo meus leitores insones em queixas e suspiros particulares, que hoje tenho vontade, tenho quase a obrigação de torná-los cúmplices de uma circunstância oposta: esta manhã acordei feliz.

Assim tão simplesmente como proclamo: acordei feliz esta manhã. Bem sei que muitos afastarão logo os olhos desta página, com admissível dose de irritação. Que poderá importar o mínimo bem-estar de uma cronista, que nem sempre sabe manter-se nos sóbrios limites do pudor? Será isso matéria pública, sobretudo quando os acontecimentos locais e internacionais revelam, sem trégua, dificuldades, sofrimentos de toda sorte, fome e cárcere? Nímias razões já temos – hão de resmungar alguns – para não nos deixarmos levar por esses insignificantes desabafos, que nenhum alívio trazem à aflição do povo. Afinal espera-se que os jornais e livros tratem de assuntos sérios e imprimam notícias de interesse geral: alguém acordou (mediocremente) de bom humor e ainda ousa escrever sobre isso – ora já se viu!

Não costumo discrepar dos meus leitores, que são, normalmente, juízes probos. Hoje, entretanto, não darei ouvidos aos que torcerem o nariz. Acordei em paz, continuo em paz, acho que vou dormir em paz – e considero essa tríplice situação tão linda, tão surpreendente e positiva, que não tenho direito de reservá-la só para mim, sob pena de ser muito egoísta. Os rabugentos que me perdoem, mas o tema é relevante e quero dividi-lo com todos, principalmente com os que, neste momento exato, estiverem decepcionados, de coração amargo, imersos em dúvidas, ou apenas tristes. O que me aconteceu esta manhã não é privilégio pessoal, prodígio de eleitos, nem milagre: é coisa natural, que às vezes chega subitamente, assim sem mais nem menos. Pode passar com qualquer um.

Sem mais nem menos, repito e confesso, a bem da verdade, que não sei de motivos especiais para ter acordado feliz esta manhã. (Não ganhei na loteria; não me deram o primeiro prêmio de nada; não me apaixonei pelo emir-dos-emires, de olhos oliváceos; não recuperei o que já perdi; não fui convidada para dar a volta ao mundo num barco à vela; não me regressaram os que me fazem falta; não compus sequer uma barcarola.) Nenhum motivo peculiar, a não ser talvez o fundamental, de estar viva. E esse rutilante rubi, que às vezes desprezamos em nossa gruta, hoje me fez acordar feliz. Só isso. Sem nenhuma complicação; assim: abri os olhos cedo, podendo dormir até mais tarde. Preferi levantar-me, de tal maneira o sossego interior me impulsava à ação, e desdenhei o sono, com o sei (já) inútil repouso. Pisquei para mim mesma, diante do espelho, cantei sozinha e fui regar minhas roseiras. Senti-me ainda em jejum, tão livre e em tão boa companhia, que decidi passar o dia inteiro em casa, exclusivamente comigo mesma.

Tudo me pareceu calmo nesta manhã de sábado em que acordei serena. Lembro-me que ontem à noite levei meus problemas para a cama, exausta. Despertando, percebi que eles tinham se volatizado. Quer dizer; devem andar por aí, ao meu redor, mas tornaram-se invisíveis (hoje, pelo menos), sombras sem contorno, balões vazios. Estou certa de que voltarão, que terei novamente de enfrentá-los e suportar seu arrogante desafio:

– Acaso julgaste, ingênua, que desapareceríamos definitivamente? Aqui estamos e estaremos sempre, à espera de que nos destruas, de que nos tritures. Não te esfalfes: quando muito, se tiveres sorte, conseguirás substituir-nos por outros, também insolúveis.

O combate se reiniciará portanto brevemente, só que – como acordei feliz – chego a pensar que acabarei aprendendo a conviver com esse áspero rebanho. Nenhum problema me arriará hoje; talvez nunca. Vejam bem, não tenciono negar a fatalidade das coisas, não me interpretem ao pé da letra. Mas é que estou em paz, sem ataduras absurdas, e essa leveza inusual dificulta-me a expressão. (As palavras são em certos momentos tão dispensáveis...) Tento explicar uma conclusão despretensiosa: com a tranquilidade que juntei, ao acordar cedo esta manhã, acho que hoje serei até capaz de admitir com singeleza o destino natural da vida. Sem revolta, com a sabedoria dos animais, por exemplo.

Resumindo: estou bem, neste sábado de dezembro – apesar de nada ter se modificado, realmente, em meu quotidiano. Acordei feliz porque sim, e nessa sem-razão, nessa gratuidade bela reside precisamente a essência valiosa da notícia que entrego aos meus leitores, em manchete: HOJE ACORDEI FELIZ! Não digam, por favor, que estou cronicando em vão – estou lhes ofertando um presente de fim de ano.

E por falar nisso, boas-festas! Acordem felizes, de vez em quando, no que resta deste ano e principalmente no próximo. 

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