Fonte: Maria Julieta Drummond de Andrade; (Coleção Melhores Crônicas). Seleção e prefácio de Marcos Pasche. Global, 2012, pp.286-288. Publicada, anteriormente, em O valor da vida, Nova Fronteira, 1982.

Pois é, gostei mesmo de passar o mês de junho aqui no Rio, revendo amigos e lugares, nessa temporada amena, quase fria, que ameiga a cidade e a torna menos tropical. Homens e mulheres se vestem com cuidado, meias, suéter, um colete de camurça, calças de veludo – indumentos que aquecem sem exagero e enfeitam com discrição. As casas se iluminam cedo, as janelas e cortinas se fecham, incomodam menos os ruídos dos apartamentos alheios, gritos, televisão, discos – a intimidade se preserva melhor. Cheguei até, em certas ocasiões, a pensar que estava em algum outro país, longe da nossa carioquice que, embora cheia de dengos e malícia, acaba cansando pelo excesso.

O Rio sempre foi assim tão cortês no inverno? – andei perguntando, com uma vaga nostalgia de todos os invernos que deixei de presenciar aqui. Eu tinha me esquecido. Por sorte, gente que me quer bem (e cultivo um buquê de amigos perfeitos) se encarregou de, quase diariamente, atiçar-me a memória, oferecendo-me almoços e jantares regados a vinho generoso; levando-me para fins de semana aconchegados na serra e à beira de outras praias; para tomar chá. Até isso: tomar chá numa cidade que eu julgava irremediavelmente limitada a sorvetes e refrigerantes.

Exultei com esse último convite e, ingênua de mim, cuidei que meu amigo me conduziria à Colombo, onde aqueles violinistas de terno preto sempre me invocaram. Nada disso: ele desfiou uma lista tão ampla de casas de chá, em Copacabana, Ipanema, no Leblon, na Gávea, que a opção se tornou difícil. Incrédula, acabei me decidindo pela que ficava mais perto. Se não servir  – pensei  –, voltamos depressa e providencio um cafezinho a domicílio.

Penetramos num desses centros comerciais que estão na moda, cheio de acrílicos, escadas rolantes, luzes difusas. Shopping center ou galeria? – indaguei inutilmente de mim mesma, pois já me explicaram muitas vezes (e não entendi) as características bem diferenciadas de cada um. Não valia a pena averiguar: o conjunto era limpo, as vitrinas vistosas, as pessoas pareciam deslizar pelos vários planos da construção, recendia por toda parte um perfume impessoal e agradável. Achei-o, entretanto, meio vazio; somente num canto, uma fila de gente. Quando nos aproximamos, descobrimos que a fila se formara precisamente em frente à casa de chá. Não é incrível: em pleno Rio de Janeiro, moças, casais jovens e maduros, poucos velhos, mães e crianças, aguardando tranquilamente uma mesa na pequena confeitaria? Nem na Europa – refleti, possuída de orgulho cívico.

Todos falavam baixinho, sem irritar-se diante da lentidão com que, lá dentro, os privilegiados sorviam seu chá, mastigavam com boas maneiras e conversavam sorrindo, indiferentes aos espectadores. Uma cena inglesa, linda.

Chegou finalmente a nossa vez, e o garçom, calmo e único, trocou a toalha e trouxe as xícaras (ia dizer chávenas) de porcelana branca. Duas senhoras distintíssimas, seguramente as proprietárias, ajudavam: uma atrás do balcão mínimo, onde se vendiam vidros de geléias e tortas; a outra, magrinha, circulando entre as mesas. Foi esta quem apareceu com um frasco bojudo, enorme, repleto de saches coloridos:

– Temos alguma preferência? Chá perfumado, de rosa, limão, jasmim, canela, ou...?

Tantos, e de nomes tão envolventes, prometendo tais delícias, que, perplexos e incapazes, optamos pelo mais simples e conhecido: o da Índia. O garçom veio com o bule de água quente, as jarrinhas de leite e de creme, a manteiga, a geleia agridoce, a cestinha catita com quatro biscoitinhos de maisena, dois croissants, dois pãezinhos, duas fatias de bolo inglês, o pratinho com dois doces de ovos, o outro com dois sanduíches embrulhados em papel transparente. Tea for two completíssimo, impecavelmente Five-ó-clock, o mais delicado que já tomei – tudo bem-feito, gostoso, nem demais nem de menos, na medida justa.

Na mesma justa medida provamos um pouquinho de cada coisa, divagamos sobre assuntos aparentemente íntimos, que a vida agitada de todos os dias nos obriga a calar. Gula e afobação estavam automaticamente banidas daquela saleta sóbria, em que tudo se processava com simplicidade e elegância. De vez em quando a senhora magrinha se aproximava, para perguntar, sempre utilizando a primeira do plural:

– Estamos satisfeitos? Queremos mais água quente?

Estávamos, quisemos. Quando terminamos (passamos ali mais de uma hora e nem o garçom nem as senhoras demonstraram o menor sinal de impaciência), um pacotinho enfeitado com laço brilhante foi posto sobre a nossa mesa. Senti-me provinciana: seria um brinde, uma lembrança, um costume novo? Disfarçando, pus o embrulho no colo e abri-o: continha o doce e a fatia de bolo em que não havíamos tocado. Ah – concluí com admiração e em silêncio (enquanto meu amigo pagava a conta, que não vi e imagino não ter sido pequena) –, o Rio é, sem dúvida alguma, a cidade mais civilizada do mundo. 

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