Fonte: Maria Julieta Drummond de Andrade; (Coleção Melhores Crônicas). Seleção e prefácio de Marcos Pasche. Global, 2012, pp.244-246. Publicada, anteriormente, em O valor da vidaNova Fronteira,1982.

Tão lindas as manhãs de junho, delicadamente frias e transparentes, luminosas... Acordo, entretanto, com dificuldade e um travo ácido na garganta. É a garra da angústia – reconheço com desânimo, e dou volta na cama, fecho os olhos, ignoro a beleza, o privilégio desta hora, quero voltar ao sono e não posso. É uma sensação tão antiga, deve ter nascido comigo, mas não consigo acostumar-me a ela: como a dor – quem é que se acostuma à dor? Ela chega assim, com o primeiro pensamento, antes dele talvez, pois já está ali, vigilante, quando, ao emergir do poço dos meus sonhos, identifico o mundo ao meu redor. Ou se não, surge, irrompe, insidiosa, com passos de flanela, perturba o meu dia de repente, em momentos em que eu já não a esperava, em que havia esquecido até que ela existia, e se instala no meu ser, verme escondido na goiaba. Ah, por que depois de tantos anos ainda não sou capaz de conviver com a minha angústia, de aceitá-la sob os mil disfarces em que se dissimula, sempre igual a si mesma, sempre intolerável, estreitando o peito, impedindo a respiração?

Tenho de enfrentá-la! – resolvo, subitamente rebelada. – Quero encarar-te, angústia, desmascarar-te, lutar contra ti em plena luz. Odeio os teus métodos ardilosos, vou destruir-te.

Continuo de olhos fechados, os punhos tensos. Choro um pouco, muito, choro até soluçar – mas em silêncio. A angústia não se encolhe, não retrocede; pelo contrário, cresce, estende seus tentáculos de fel, talvez me estrangule.

Não! Hei de pisar-te, monstro de todas as cabeças, de todos os rabos, tua presença me fere, me deixa ensanguentada. Não suporto mais o teu veneno.

Ela se desenrola, avança, é uma serpente quilométrica, e sua língua fina, seu aguilhão vão se cravando em meu peito já sem força, em meus dentes enrijecidos, em meu corpo úmido, nos cabelos embaraçados, na testa que arde. Estou fixa na cama, qualquer movimento dói, preciso cuidar-me, preservar-me. Concentro-me num esforço único, sou um arco rígido, globo prestes a explodir – e não explode. Tenho de salvar-me, fugir deste cerco de arame farpado.

Uma pausa – respiro. Engulo a saliva acumulada (a simples função de engolir, tão habitual em nossa rotina fisiológica, transforma-se em ato importantíssimo, quase impossível de ser executado). Estou suando, não choro. Recupero lentamente a consciência: sei que não nasci para o sofrimento, minha vocação é para o riso, a saúde, o prazer, a alegria das coisas mínimas, que tenho em mim, e das grandes que me circundam. A angústia é minha inimiga e só prezo os muito amigos. Tenho certeza de que ela continua a postos e que esse instante que me concedeu não foi um gesto de piedade: ela também necessita recompor-se e já se prepara para novo bote. Que não dará. Hoje, pelo menos, não. Talvez daqui a pouco, ou amanhã, depois de amanhã. A angústia é imortal, ou por outra, é morta na medida em que também o sou: veio comigo, partirá comigo. Agora, porém, vou reprimi-la. Não vivi inutilmente: a felicidade e as tristezas sedimentaram-se em mim, construíram uma argamassa que me forra inteira, ensinaram-me a defender-me. A dor, as dores (e foram tantas) não me debilitaram nem mutilaram. Estou intata e cada vez mais dura, de aço. A angústia terá de ceder, estou aprendendo a domá-la, hei de obrigá-la a murchar, contraída em sua própria seiva escura. Vou vencê-la.

Penso nos que sofrem, como eu, nesta manhã. Nos que vão morrer e sabem disso, nos que não encontram alívio em remédios e frases, nos que perderam o que adoravam, nos que neste momento soluçam, inconformados, nos que têm medo. Penso em meus irmãos espalhados e perdidos pelo mundo, com fome, órfãos de tudo, solitários, sem casa, sem amor, sem água, cobertor, coragem, sem sol, sem, sem. Penso em todos e tenho vontade de ajudá-los, de unir-me a eles, ingressar nesse batalhão semiderruído, e abraçá-los, acarinhá-los, sussurrar-lhes, berrar-lhes uma palavra, uma única palavra de consolo. Não sei qual, não faz mal, eles me entenderão. Vamos adiante, venham comigo, desconheço o caminho, não tenho armas, nunca tive, mas, juntos, encontraremos a saída. Abaixo o labirinto e o minotauro, venham, venham comigo! Para onde? Não importa. Já não seremos o que fomos, mas somos os mesmos, sendo outros. Também não importa. Só interessa a certeza de que estamos aqui, frágeis e imbatíveis, e de que lá fora – é junho! – a manhã nos aguarda, bela, indiferente, radiosa.

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