Imagem incômoda

Este Natal, deram a João Brandão um cavalo. Ele ia ficar radiante: sempre desejou cavalgar, jamais possuiu um animal. Já andou por fazendas e sertões, montando animais alugados. Era a primeira vez que tinha um cavalo de seu, perspectiva de alegria muita. O diabo é que seu cavalinho era de tamanho muito inferior ao natural; não revelava a menor inclinação para galopar, trotar ou mesmo andar de chouto: a rigor, não andava mesmo nada. Para falar claro: era um cavalo de cerâmica. E cabia dentro do escritório, mas impedindo resolutamente a passagem. 

— Que vou fazer com este cavalo? — Interrogou-se João Brandão, tropeçando numa cadeira. A dor da pancada no joelho impediu-o de responder a si mesmo, e o cavalo tampouco parecia disposto a escolher um destino. Ali o puseram, ali ficaria. Há, presentes incômodos. Se o presente assume a forma inusitada de cavalo, fica-se com raiva da espécie, tão nobre e gentil, mas incompatível com a vida em apartamento. Também ocorreu a João ter raiva do amigo que o mimoseara com objeto de tal porte. 

Pois o cavalo era pequeno para cavalo, mas enorme para decoração. Do tamanho de um jumentinho de puxar charrete de criança no parque? Talvez maior até. João procurou a fita métrica de costura da mulher, mediu a altura do bicho. Estava abaixo do metro e 50 de um manga-larga comum, mas excedia os 90 centímetros de um jegue. Com a medição, ficou esquecido o desejo de sentir raiva do presenteador. Mas o desejo voltou, e João teve vontade de devolver o cavalo.

Ideia tão grosseira não podia permanecer muito tempo em seu espírito. Acudiu-lhe outra menos irritada: passar adiante o cavalo, aproveitando este resto de ano, em que os retardatários se presenteiam. Dar a quem? Não queria para seus amigos o que não queria para si. Entretanto, haveria entre eles algum de gosto menos fino, ou de sala mais vasta, onde o animal pudesse pastar em pensamento sua erva imaginária. Passou em revista as relações menos chegadas. Mandar um cavalo daquele tamanho a um pouco-mais-que-conhecido dava muito na vista. Além do mais, obrigava a retribuição. Já pensou o que poderia chegar, em agradecimento? Um camelo de plástico, talvez.

João lembrou-se daquele conto de Tchecov: o médico que recebe de um cliente agradecido, proprietário de uma loja de antiguidades, um candelabro de bronze, sustentado por mulheres nuas e um tanto marotas. “Agradeço, mas não posso botar isso em meu consultório”, diz ele. O cliente insiste: “Não me faça esta desfeita, doutor. É uma obra de arte preciosa. Pena é que falte a outra peça, pois trata-se de um par. Mas logo que eu consiga a outra, venho trazê-la para o senhor”. O médico, vencido, mas inconformado, oferece o candelabro a um advogado que lhe ganhara uma causa. Mas este não pode expô-lo no escritório, frequentado por senhoras. Passa-o a um ator cômico, que, sendo ator cômico... Ele também não quer o candelabro, e vende-o ao antiquário. Este, feliz da vida, leva-o em triunfo ao médico: “Doutor, aqui está a segunda peça que eu lhe prometi”!

João recuou, pensando que o cavalo podia voltar uma, duas vezes, para sempre. Enchendo seu escritório e sua vida.

Que fazer? Fica para a próxima.

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