Imagem do ano
Este escriba desejava compor alguma coisa em verso para o fim do ano, acompanhando o ritmo dos pés dançarinos nos clubes, mas, pensando melhor, vamos à prosa. Toa mais com a vida, que não se serve de consoantes de apoio, rima pouco e desconhece o leixa-prem e outras sutilezas do Thiers Moreira. É mesmo admirável como a maioria das pessoas vive sem poesia e não vive mal. A própria poesia, coitada, vive sem os poetas, ou contra a vontade deles, que lhe pregam rótulos, querendo-a tendenciosa ou formalista, e confundindo-a com seus borborigmos.
Para falar do ano morto é preciso alguma coragem. Também morremos um pouco com ele, e não ousamos contemplar nosso espectro em formação. No geral, ficamos mais sabidos, isto é, mais surrados pelos acontecimentos. Se uma florzinha de resignação vicejou no terreno baldio, devemos incluí-la na coluna dos bens adquiridos, como preciosidade maior que as ações de maior dividendo. A seu lado, outras espécies menos simpáticas floresceram com exuberância, e quantas vezes faltamos com a benevolência, fizemos o que não queríamos, esquecemos o que desejávamos, insistimos no fútil, deixamos perder-se o que não tinha preço? Praticamos tudo isso, e estamos prontos para mais, sem premeditação. Mas houve instantes — quando menos se esperava — em que nos reconciliamos com o mundo, fomos irmãos-no-mundo, ô delicia!
O ano internacional foi aquilo que os senhores viram. Ninguém chega a seu fim satisfeito. Países e indivíduos, houve os que se portaram mal e os que pecaram por omissão. Houve fogo sem guerra, destruição sem razão, houve extrema falta de moralidade e sensibilidade dos dirigentes políticos, que mais uma vez mandaram os outros matar e morrer em nome de abstrações ou simplesmente de algarismos. Recomeça a migração por violência política. As regras de convivência foram desrespeitadas com um despudor insigne. Começamos a olhar para o céu com medo de que o ar esteja envenenado. Surgiu uma nova besta do Apocalipse: o estrôncio 90. Nossa esperança refugia-se aqui em um dominicano, ali num socialista (quem sabe se o socialismo não sairá reabilitado, do atual processo de desintegração da burocracia soviética?), mais adiante num dr. Schweitzer, que abandonou tudo para cuidar dos leprosos na África, e mandando ouvir Bach no começo e no fim de cada tarefa, nos ensina que só é possível reconstruir o mundo na base do respeito à vida. Essa esperança repousa ainda nas pessoas chamadas João, Maria, José, Francisco, esses milhões de anônimos sem ódio, humildes na sua ausência de defesa, que, apesar de todas as razões para desanimar, não desanimam e, sob os regimes mais diferentes e absurdos, continuam cumprindo o ofício de viver.
No plano brasileiro, amigos, discutimos muito e inauguramos algumas usinas. Pena que esse progresso econômico vizinhe e em certos casos até promova, como o surto imobiliário, certas formas de abandono do homem. Mas a soma de boas vontades operando no Brasil de hoje é imensa, não obstante a descrença total no sistema administrativo, e a desqualificação da atividade política. Nesse último setor, reparem que todas as vitórias democráticas (entre várias derrotas) foram negativas: “não” se deu andamento à lei contra a imprensa, “não” se votou a lei de suposta fidelidade, “não” se votou a prorrogação de mandatos, “não” se sancionou a triste emenda de viaturas para congressistas e magistrados. A legalidade andou molezinha o ano inteiro, tão tímida e desconfiada de si mesma que é o caso de perguntar quem mais a ameaçou: se os conspiradores cabeçudos ou os que a encarnaram. Que em 57 o governo se lembre de ser mais governo, e não um compromisso de partidos, e a Câmara tome chá de juízo. Um ano ensina muita coisa.
Finalmente, a quem se sentir melancólico pelo simples fluir do tempo, recomendo ler Propos sur le Bonheur, de Alain. Não traz nenhuma receita de felicidade, mas lembra que o que podemos desejar de melhor ao próximo e a nós mesmos é bom humor.
Está desejado.