Semana passada, animais de toda sorte, desde o cavalo à tartaruga, passando pelo esquilo, foram abençoados por um frade, em praça pública de Ipanema. Não sei o que eles acharam da bênção. O ponto de vista dos animais não é necessariamente o nosso, por muito que eles façam para entender-nos. E em matéria de práticas religiosas, os próprios seres humanos divergem infinitamente de opinião. Mas a bênção foi dada com a melhor das intenções, e a tartaruga não terá motivo para reclamar contra essa efusão espiritual de amor sobre sua carapaça.
O que não quer dizer que os bichos não tenham opinião. Tanto a têm que editam um jornalzinho, ou encarregam gente de editá-lo por eles. Chama-se precisamente A Voz dos Animais e já vai pelo sexto número. Em cinco anos, saiu à rua seis vezes. Não se pode dizer que os animais abusem do direito de manifestar-se. A lei de propaganda eleitoral, que coíbe tanto os candidatos, não precisaria exercer sobre eles o seu rigor.
Tenho à mão o número 6 e parece-me ouvir, de fato, a voz do animal através da modesta textura do papel de mimeografado. Porque o jornal é mimeografado. As finanças da organização não dão para mais. De qualquer modo, a voz, as vozes múltiplas e não raro pungentes dos chamados bichos (curiosa diferenciação nominal: pois cada um de nós não é também “um bicho da terra tão pequeno”?), os signos linguísticos específicos de várias espécies irrompem do jornalzinho pobre e vêm cutucar-nos o ouvido pouco afeito a linguagens não dicionarizadas.
Precisamos falar, precisamos ser escutados — diz o vozeio humilde, e aqui é um gato a protestar contra a estúpida corrida de gatos, ali é o cavalo pingando sangue depois do rodeio em que o obrigam a derrubar o cavaleiro, esporeando-o nas partes mais sensíveis. Mais adiante é o touro, “pedindo ao homem que seja pelo menos tão civilizado quanto ele, que precisa de farpas e aguilhões para ter vontade de brigar como espetáculo”.
O animal como ator compulsório de um espetáculo de sadismo com fins comerciais — eis uma das misérias da sociedade de entretenimento ou de consumo de crueldade, que não recomenda o homem superequipado de remédios contra a dor e de leis de proteção física e mental ao indivíduo. Ainda nos comprazemos em fazer sofrer, e tiramos disso um lucro em moeda corrente, que mais uma vez a pequenina, débil e mimeografada voz dos animais denuncia nos limites do melhor dos nossos órgãos de imprensa.
Mas os bichos não só protestam, apelam, tentam convencer. Também sabem a palavra de gratidão, e vive o sr. Décio, dono de mercearia em Saquarema, espécie mirim de São Francisco de Assis, a quem eles agradecem o carinho com que acolhe tudo o que é cachorro ou gato doente ou atropelado que lhe assome à porta. Dizem até que os animais já sabem, e procuram espontaneamente o irmão Décio. Velhinho matusca, desencantado da sociedade humana, que distribui aos bichos o sentimento fraterno recusado aos semelhantes? Nada disso. Décio é moço, casado, quatro filhos, gosta da vida e de tudo, inclusive de bichos sofrentes. E sua mulher também. Enfim, o que há de notável em Décio é que ele não é notável: só que faz papel de gente, quando gente costuma fazer papel de pedra.
Eta jornalzinho bom de notícia. Sua reportagem internacional fala de experiências clínicas nos Estados Unidos, onde um hospital de crianças tem como “introdutor diplomático” o cão Jingles, adorado pela molecada. Lá, diz o prof. Corson, da Universidade de Ohio: O cão é um co-terapeuta de primeira. Serve de ponte entre o esquizofrênico e o mundo, quando aquele se sente rejeitado. Mistérios da mente humana tornam-se menos turvos se a figura de um cachorrinho se interpõe, de rabinho abanando, a despertar interesse pela vida.
Coisas. Aprendemos com os irracionais, por que não? A Voz dos Animais ensina e conforta o coração angustiado do homem. Bem haja a Associação Protetora dos Animais (Rua da Carioca, 32, 6º andar) que nos faz ouvir essa voz ausente dos microfones.