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Fonte: Coleção Melhores Crônicas: Maria Julieta Drummond de Andrade.  Seleção e prefácio de Marcos Pasche.  Global, 2012, pp.135-137. Publicada no livro Gatos e pombos, 1986.

Então, amiga, você decidiu partir assim de repente, sem aviso, com esse jeito silencioso que nunca deixou de cultivar? Confesso que fiquei chocada, a princípio, tão triste e confusa, achando que você tinha sido ingrata, egoísta, sei lá. Depois entendi e parei de me queixar. Sobrou a saudade. Foi você mesma que me ensinou a aceitar sem revolta nem excesso de júbilo a realidade, tal como se apresenta. Só que eu esperava ter tido alguma oportunidade, por mínima que fosse, de rever você: afinal três anos já decorreram desde que a vida nos separou – e nunca mais tivemos ocasião de encontrar-nos. Às vezes eu acordava melancólica, pensando em você, em sua doçura, em sua astúcia, em seu sentido de humor, entrelaçados em doses certas, mas aí me lembrava de outra lição que também recebi de você: a ausência não invalida o afeto e nem sei se o convívio permanente não será, antes, um elemento perturbador das relações do que um modo de fortalecê-las. Tudo isso aprendi com você, imperceptivelmente, durante os períodos em que, por motivos alheios à nossa vontade, tínhamos que passar temporadas longe uma da outra. O reencontro era sempre bom, apesar de você não exagerar as demonstrações de alegria por estarmos novamente juntas. Não conservo mágoa, repito, da pressa que você demonstrou em empreender a viagem: no fundo, não podia esperar conduta diversa de alguém independente como você, mas teria sido tão lindo, tão consolador, se eu tivesse podido estar presente na despedida.

Até isso, entretanto, Amiga, acabei admitindo sem acidez, pois, entendendo você como sempre julguei entender, tenho certeza de que quis dar-nos a todos, e sem ostentação, uma aula de fidelidade. O momento era demasiado importante para ser presenciado por mais de um espectador, e você precisou fazer uma opção definitiva. Escolheu então o seu verdadeiro protetor (e protegido), o Rapaz que, sendo você apenas uma esquiva miniatura de olhos azuis, apresentou-a à nossa família. Ambos formaram espontaneamente uma espécie de par insubstituível, de forma tão delicada, porém, que nunca inspiraram ciúme ou despeito. O amor que uniu vocês dois se tornou de tal sorte fundamental que permitia a ambos viverem ou não sob o mesmo teto, sem que se alterassem os vínculos do coração. Era, pois, natural que você elegesse o Rapaz como única testemunha da sua partida, apesar de saber que ele iria sofrer, e muito. Era indispensável para os dois que ele fosse a última pessoa (como antes fora a primeira) a ajudá-la, a acariciá-la, a cuidar de tudo o que lhe faria falta na circunstância. Contaram-me (e nem seria necessário, porque também conheço intimamente a alma bonita do Rapaz e posso imaginar tudo o que de fato ocorreu) que ele fez o impossível para provar-lhe o quanto desejava adiar sua viagem, convencido embora de que a sua decisão era imutável e que nenhum gesto ou súplica a teria modificado. Você fez assim questão de retribuir o inextinguível afeto que ele dedicou a você, oferecendo-lhe – como um buquê de miosótis ou uma turquesa, azuis como os seus próprios olhos – a prova indiscutível de sua gratidão. E depois, por que repartir com liberalidade a dor, se ela é intransferível? Poucos merecem dádiva tão valiosa. Obrigada pela precisão com que, às ocultas, você planejou a viagem.

Aliás você sempre teve razão, Amiga, mesmo quando, farta dos exageros humanos a seu redor, você se impacientava e decidia esconder-se, surda a rogos e chamados, para só voltar quando o tédio cessava, com o ar mais cândido deste mundo, como se tudo não tivesse passado de um capricho infantil e não de urgência de solidão. Você era mestra em pregar-me pequenas peças ou sustos, a fim de defender a liberdade de ser você mesma, de demonstrar sua altivez, sua resistência aos agrados fáceis, sua majestade. Se nasceu rainha de Sião, como poderia reagir em outro estilo?

Recordo com nostalgia as três vezes em que, sentindo a aproximação do risco, Amiga, você me procurou, calada, para que eu tratasse de solucionar as dificuldades que a afligiam: quando teve o primeiro filho natimorto; quando vieram os sete seguintes, alguns tão fraquinhos que você preferiu abandoná-los e dedicar-se aos sadios; e quando chegaram os dois últimos, também mofinos. Você nem tentou contrariar a natureza: o que fora programado pelo acaso ou por forças maiores deveria ser cumprido, e era inútil lamentar o que estivesse destinado ao fracasso. Contaram-me também que você conservou esta filosofia, digna do seu sangue oriental, até o instante de partir.

Você retribuía meu esforço com sutileza e sobriedade, Amiga, em minhas horas de tristeza ou doença: um olhar mais longo, um toque mais suave em minhas pernas, uma lambidinha áspera em minha mão, um ronronar mais forte. Retribuía sobretudo com a presença fixa e vigilante a meu lado. Você foi a melhor enfermeira, o melhor confessor que já tive.

E como você viajou tão subitamente, Amiga, só me resta dizer-lhe adeus, eu que tantas vezes escrevi sobre sua beleza e carinho. Para brincar (nós duas sempre adoramos molecagens) e para realçar a multiplicidade de sua figurinha ágil em minha vida, eu me distraía em dar-lhe, em letra de forma, os mais surpreendentes apelidos. Hoje, ao despedir-me, prefiro chamá-la pelo seu nome verdadeiro, de insinuante estirpe: Boa-viagem, Greta, gatinha querida.

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