Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 7/07/1972.
Reflexões num cubo de gelo - 4
Dois dias atrás estava eu na varanda do Antonio’s quando se aproximou um velho mulato e chamou João Luís. Este ia tirando a mão do bolso, de onde vinha com a chave de seu automóvel, mas foi obstado pelo velho:
— Não estou pedindo dinheiro. Quero falar com o senhor.
Usava roupas sujas e puídas. João Luís atendeu. Na volta, enquanto o velho permanecia na calçada, dirigiu-se a mim: E agora? Que é que nós vamos fazer?
O velho estava com as duas pernas quebradas e precisava internar-se no hospital Miguel Couto. Exibia a papeleta correspondente à sua inscrição. Mas não havia vagas e ele tinha urgência. Estava há dias sem comer, sofrendo amargamente, e no hospital encontraria proteção e comida. Mostrava em seu rosto sofrido, de pele queimada pelos materiais usados na construção civil, aquela expressão orgulhosa do verdadeiro operário. Alguém que morreria de fome antes de se rebaixar pedindo esmola.
Localizamos um médico nosso amigo, explicamos a situação, e ele prometeu solucionar o caso na manhã seguinte, desde que o velho aparecesse com um bilhete assinado por mim. Fiz. A esperança se iluminou no rosto do operário. “Ainda há gente boa neste mundo”, disse ele. Ao entregar-lhe o bilhete, percebi que seus olhos continuavam fitando os meus: faltava-lhe o reflexo do alfabetizado, cuja atenção se dirige automaticamente para a coisa escrita. Dei-lhe ainda uma nota de Cr$ 100,00 e consideramos o caso encerrado. Mas quando me sentei de novo me ocorreu uma singular coincidência: ele estava há três dias sem comer, mas eu, seu benfeitor, também estava. Éramos, portanto, dois mundos que se encontravam, um real e outro irreal, um constrangido pela necessidade e outro pelo tormento espiritual. O artista que na Renascença descobriu a perspectiva recusou comida dias seguidos, porque, estando por demais alegre, não desejava interromper seu trabalho a pretexto nenhum. Trabalhava mais do que um operário, e nas mesmas duras condições, só que para ele aquelas privações vinham juntas com a própria felicidade. Igual sentimento deveria experimentar o Aleijadinho quando amarrava os instrumentos em seus cotós.
Algum tempo depois, chegando em casa, fui informado pela empregada de que só haveria jantar se fosse servido até oito horas da noite. Não era uma imposição, era uma súplica. Acontece que cortaram a luz em boa parte da área ocupada pelos favelados da Rocinha, e assim ninguém mais se atreve a voltar para casa depois que escurece. As crianças choram apavoradas no escuro. A ordem é só restabelecer a iluminação depois que o proprietário de cada barraco entregar a não sei quem a quantia de Cr$ 200,00.
— Seu José, quem é que tem 200 contos lá na Rocinha? — Perguntava-me dona Josefina, aliás gemia, era uma queixa feita em forma de interrogação.
— Está bem, então não precisa servir o jantar. Aliás, eu não sou muito de comer, a senhora sabe. Pode ir.
Dona Josefina tem seis filhos e um marido desempregado por ser analfabeto. Os filhos estão na escola, mas ela também é analfabeta. Boa criatura, trabalhadeira, inteligente, mas fala mais do que locutor de rádio em partida de futebol. Depois que abre a boca, preciso inventar alguma coisa para ela fazer, do contrário fico à mercê de uma multidão de palavras. Aprendeu a cozinhar com sua antiga patroa. Tem uma vizinha, igualmente mãe de muitas crianças, que procura em vão empregar-se como doméstica. Acontece que não sabe cozinhar. Mas Josefina, como é que a pessoa, sendo pobre e mãe de muitos filhos, não sabe cozinhar?
— Ora, seu José. Como é que ela vai aprender a cozinhar se não tem comida para fazer? Pobre come feijão com arroz. O senhor acha que gente rica vai passar a vida comendo feijão com arroz?
Argumentação irrespondível. Desci de volta ao Antonio’s.