Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil,  de 14-15/02/1971.

Um gato ganhou um homem, o que já era problemático, pois se tratava de uma gatinha. Tal como o pai que esperava menino e veio menina, ele sempre diria, daí por diante, “meu gatinho”.

Era uma angorá de pelo cinzento, bem pequenina. O homem, de raça comum, estava mais uma vez só. E à noite era recebido com festas pelo amiguinho ronronante, que lhe mordia a mão, mas sem machucar, e roçava o focinho em seu rosto. Era, contudo, apenas um gato, e o homem dizia:

— Precisamos arranjar uma namorada para nós.

Mas impaciente, não se aplicava à conquista com a delicadeza necessária. Chegava sempre só, trazendo mais um pouquinho de fracasso e remorso.

— Que espécie de coração é este — dizia ele ao gatinho, os dois sentados numa cadeira de balanço. — Que espécie de coração é este que não esquece a mulher que partiu, e que está sempre recomeçando e sempre terminando?

Poderiam viver assim, homem e gato, indefinidamente, mas ele queria mais, queria o amor da mulher, mas qual mulher? Uma, possível, lhe deu um livro sobre espiritismo. Ele perdeu o livro e ela não lhe poderia dar mais nada, a não ser aquela prova (o livro) de haver compreendido a natureza metafísica do sofrimento dele. 

A outra, a de olho azul, lhe ofereceu amizade. Mas que espécie de amizade pode haver entre homem e mulher quando um deles está querendo amor? Quando para suportar a sua angústia, cuja origem e alvo desconhecia, era preciso estar apoiado a um coração feminino?

Havia uma canção, Eu preciso aprender a ser só, que ele cantarolava sob as estrelas. De noite, à beira do mar, imaginava o momento sublime em que as estrelas começassem a cantar lá no alto, derramando o segredo sobre este planeta escuro e desamparado. Considerava incompreensível, injusto, ultrajante, essa viagem sem fim na escuridão e no silêncio. E erguia o punho contra as constelações.

Ao mesmo tempo, considerava com assombro o milagre que é um gatinho ronronante, a gentileza divina desse pequeno animal. Havia uma contradição entre os gatos e os homens, entre as flores e os homens. Ou bem haveria apenas gatos e flores, ou bem apenas homens. Os olhos deslumbrados do gato, a indescritível delicadeza de seus gestos, sua inteligência pura, nunca manchada pela dúvida, lhe pareciam um tesouro por demais precioso para que não fosse inoculado num ser superior. O gato era Deus, mas o homem não era um gato. O homem era o habitáculo da solidão sem remédio — um peremptório desmentido em movimento.

Mas o gato, a graça, cada noite lhe consolava, e ele discernia uma fímbria de conteúdo na palavra felicidade. Esse grão de discernimento era suficiente para fazê-lo continuar, e assim continuava.

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