Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 3/05/1976. 

Nove horas da manhã. Sento-me para o café. Nem todo mundo começaria assim o dia, quebrando o jejum, pela ordem, com duas colheres de mel de abelha, uma fruta-do-conde, uma laranja, dois ovos quentes, torradas macias que escapolem da torradeira elétrica, posta sobre a mesa, e logo generosamente amanteigadas, e café preto quente. “Nem todo mundo”, repito contente — ainda a chupar a laranja que aliás está levemente azeda — quando algo sucede à minha esquerda, na janela: um ruído de lata batendo em madeira, um pigarro, uma voz masculina que diz qualquer coisa a não sei quem. Olho: há uma escada e nela um homem, ambos enquadrados na janela. Um homem com um balde de tinta na mão esquerda esticada ao longo do corpo, o braço direito erguido cuja mão não vejo e que sem dúvida empunha uma brocha. Também não lhe vejo a cabeça, nem as pernas, só o resto do corpo, do pescoço aos joelhos. Calças e camisa de tecido barato, nem brancas nem de qualquer outra cor (um desbotado sem se ter desbotado, eis a cor). Calça e camisa amassadas, com manchas de tinta amarela.

Estou acostumado. Há uns trabalhadores pintando a fachada do prédio, isso já tem semanas, tenho visto três ou quatro deles pendurados em andaimes, outro dia ofereci cafezinho ao que estava praticamente ajoelhado no peitoril do meu escritório, mas logo mudei de aposento. Achei desagradável a presença daquele desconhecido; intolerável que estivesse devassando a minha intimidade. Agora temos este outro, na sala de jantar, e me sinto apanhado na armadilha urbana. A mesa está posta, tenho meia laranja na boca, depois virão as torradas, não posso fugir. Uma reflexão na vertigem: tal como o animal selvagem se torna agressivo no instante em que outro bicho invade o seu território (Konrad Lorenz), não posso fugir de minha própria casa, não devo e não quero fazê-lo... Seria anular-me; seria fazer de mim coisa nenhuma; límpidos às vezes, outras vezes sombrios são os meus instintos, mas na situação presente estamos em plena claridade. Reprimido por todos os lados (ou melhor, por dentro e por fora), só me restaria declarar-me escravo, caso admitisse estrangular o animal que persevera em mim, contra tudo e contra todos, e que é a minha própria identidade, minha natureza... Um belo animal orgulhoso, cioso de seu orgulho, inquebrável por definição, se bem que exposto a todas as mutilações que o homem costuma infligir ao homem... Por sorte, tenho um pequeno território, sou um inquilino, não me perseguem, cumpro os meus deveres de cidadão, tenho o direito de mastigar em paz a minha torrada... Em Moscou, num delírio, escapei da prisão, da tortura e do exílio, por omissão e ceticismo, e também não cometi nenhum crime contra o meu semelhante... Todos os dias, a esta hora, há milhares de pessoas tomando o café da manhã, e nunca me senti compelido a privá-las desse pequeno prazer que nasce da necessidade elementar... Meus impulsos assassinos dirigem-se todos às constelações, contra as quais ergo o punho furioso sempre que me defronto com a humilhação... Há uma raça condenada aos infernos: aquela das almas que entrarão com desdém no anfiteatro do Juízo Final... Ah Cristo, quão longe estamos de tua mansuetude....

“Os fenômenos da vida podem ser comparados a um sonho, um fantasma, uma bolha de sabão, uma sombra, o resplendor do orvalho, o lampejo do relâmpago, e assim devem ser contemplados” — (O Buda, no Sutra imutável).

Entretanto, a rósea torrada, chamuscada nas bordas, escalope da torradeira. Há que amanteigá-la antes que esfrie, e o café também deve ser bebido quente. Voltemos à realidade; sim, ao nível do trabalho duro, humilde, sem metafísica outra que não a esperança em dias melhores. Pois esta é uma reflexão sobre a fome, e cá estamos nós: o intelectual comendo, o proletário pintando paredes. Só por coincidência isto se passa nas proximidades do Dia do Trabalho. 

jose-carlos-oliveira