Um funcionário do Instituto Médico Legal estava de plantão domingo de tarde, por detrás de uma dessas mesas de saguão onde, geralmente, ficam os burocratas que prestam informações aos interessados. Geralmente eles dizem “não é aqui”, ou mandam preencher uma papeleta, ou então encaminham o infeliz a uma papelaria onde são vendidos os mais diversos e esotéricos formulários. Este último obstáculo, por ser domingo, estava naturalmente fora de questão.
O funcionário, acostumado a lidar com pessoas que procuram cadáveres, viu aproximar-se um indivíduo que, depois de lhe desejar boa tarde, prestou as seguintes declarações:
— Chamava-se Lael da Silva, contava 28 anos de idade. Residia na rua José Santos, 90, Vila Mariana — Itu, São Paulo. Exercia a profissão de garçom, juntamente com seu irmão Leonel, cujo cadáver estava na geladeira do IML. A fim de comprovar o que dizia, Lael exibiu sua própria carteira de identidade e uma fotocópia da certidão de nascimento do defunto.
O funcionário imediatamente lhe forneceu o atestado de óbito de Leonel.
— Bem — disse Lael. Agora eu gostaria de providenciar um enterro decente para o meu irmão.
A um gesto do burocrata, dois senhores de aparência austera se aproximaram e, sem mais delongas, disseram:
— Enterro decente é conosco. Você só precisa nos entregar o atestado de óbito. O resto nós providenciamos.
Esses dois senhores, Laimar e Álvaro, são agentes funerários autônomos, que é como se chama legalmente a atividade dos papa-defuntos. Eles discutiram com Lael as providências que deveriam tomar no sentido de assegurar ao infortunado Leonel um enterro “decente”. Na tabela de serviços funerários, conforme todos sabem, dependendo da situação financeira dos entes queridos, há enterros que são verdadeiras pompas fúnebres, e outros, no final da escala, que um observador desapaixonado há de considerar decididamente indecentes.
O grau mínimo de decência estabelecido pelos papa-defuntos estava tabelado em torno de Cr$ dois mil. Lael da Silva pechinchou — sem êxito. Então, como era domingo e ninguém anda por aí aos domingos com Cr$ dois mil no bolso, ele sacou um talão de cheques. Neste momento, foi sincero:
— Atualmente, não tenho fundos. Só no fim do mês. Vocês compreendem, sou garçom, sou pobre, vivo do meu salário. Farei então um cheque pré-datado.
— Oh não! Essa não! — protestaram os agentes funerários autônomos. — Não trabalhamos com cheque nem em dia útil e a pagar no banco ali da esquina, quanto mais com um pré-datado a ser descontado numa agência em São Paulo. Tenha paciência, mas queremos grana viva.
— Neste caso — disse Lael — vamos esperar até terça-feira. Eu volto aqui com o dinheiro na mão. O meu mano Leonel ficará mais alguns dias na geladeira, coitadinho, mas não deixará de ser conduzido com decência à sua última morada.
Terça-feira, Lael não compareceu ao encontro marcado. Os papa-defuntos concluíram: ele não tem, nem terá tão cedo a quantia de Cr$ dois mil sem a qual não se pode providenciar o enterro de Leonel. O atestado de óbito foi devolvido ao IML e, caso Lael não dê as caras em tempo hábil, seu irmão será enterrado como indigente segunda-feira próxima, no cemitério de Santa Cruz. Enterro de indigente é assim: um caixão de madeira barata, sem sombra de capricho marceneiro; um coveiro magro com a caveira cheia de cachaça; um buraco e — vlumpt! — um punhado de terra que desaba sobre o falecido.
Leonel da Silva, o irmão de Lael, estava com um comparsa na estrada do Cafundá, em Jacarepaguá, no dia 11 de fevereiro. Armados, tentaram apossar-se do dinheiro destinado ao pagamento de operários da construção civil. As vítimas reagiram, o comparsa fugiu e Leonel foi linchado. Amarrado numa árvore, morreu massacrado por pequena e anônima multidão, enquanto gemia, “chamem a joaninha, pelo amor de Deus!” (Joaninha é aquele fusca da PM que faz a ronda em alguns bairros).
Teve morte de cão raivoso, o Leonel. E ao que tudo indica terá enterro condizente com o tipo de morte que lhe infligiram. Lamentemos apenas que dois papa-defuntos estejam agora, com razão, lamentando o tempo que gastaram no domingo passado, na fracassada tentativa de realizar um bom negócio.