Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 6/11/1970.

— Seu Ramos! Seu Ramos!

Ele se aproxima com o chapéu de palha na mão. Foi um homem muito importante na minha adolescência: Seu Ramos, dono da primeira sorveteria de Jucutuquara e fabricante pioneiro, no Espírito Santo, do picolé de coco por dentro e chocolate por fora. Foi ainda o primeiro a vender Coca-Cola em Jucutuquara. Não o vejo há 20 anos. Ele se aproxima, estou dentro de um Volks, na barca, a caminho de Niterói. Seu Ramos se debruça na janela, está muito velho, a memória fraca, não tem a mínima lembrança de mim e, no entanto, aos domingos eu vendia picolé para ele no estádio de futebol e, no entanto, uma tarde roubei dez cruzeiros antiquíssimos da caixa registradora e passei uma semana com medo de Seu Ramos descobrir e mandar me prender. Procuro ajudá-lo a lembrar-se:

— O senhor não é o pai de Guaraci?

Rodando a aba do chapéu nas mãos grossas, escurecidas pelo sol e pelo tempo, Seu Ramos começa um monólogo que só terminará em Niterói:

— Eu era o pai de Guaraci... Fui o pai de Guaraci... Você conheceu Guaraci? Ah, Guaraci era tudo o que nós tínhamos, a minha patroa e eu... Faz 12 anos... Ele estava no quarto ano de medicina... Morreu afogado na Barra da Tijuca... Desde então tenho andado por este Brasil... Estive em Paraty outro dia e visitei o alambique... Você trabalha na novela das 22h? Ah, é muito tarde. Eu vejo é a das 19h. Eu tinha uma empregada que trouxe do Espírito Santo e ela me deu muito trabalho. Adoeceu gravemente e gritava: “Eu não quero morrer sem ver o final de Pigmalião 70”! Acabou morrendo e não viu o final...

— Ah, Guaraci estava no quarto ano de medicina... Quando você for a Paraty, não deixe de visitar o alambique... Vale a pena.... Eles lá nos trataram muito bem. Nos deram caldo de cana, melado com farinha, cachaça e rapadura. Estou passeando nesta barca para matar o tempo. Fui chegando e perguntando: “Quanto é que paga para ir daqui a Niterói, sem carro”? E responderam que não paga nada... Então aqui estou eu... Quero ver como é que está a ponte Rio-Niterói... Eu trabalhei cinco anos lá em Jucutuquara. Procurei um lugar para instalar uma sorveteria e achei que aquele era o melhor. Não era brincadeira: três escolas e uma fábrica de juta por perto. Nos primeiros meses ganhei um dinheirão. Acabei vendendo o negócio — aliás, vendi fiado, até hoje não vi a cor do dinheiro. E voltei ao Rio. Sempre morei na Penha. Estou fugido de casa, matando o tempo aqui nesta barca, porque a patroa queria que eu encerasse a varanda. Ah, se eu ganhasse na Loteria Esportiva faria uma viagem ao Japão. Você devia ser muito novo naquele tempo, não? Mais novo do que Guaraci. Ele nadava bem. Foi salvar um companheiro que se afogava, uma onda jogou o companheiro na areia e a outra levou Guaraci para a correnteza. Coitadinho, ele lutou furiosamente, mas foi em vão. Então eu me aposentei, vendi uma casa e comprei um Volkswagen — mas podia alugar a casa por 400 contos e comprar o Volks a prestação, não é mesmo? Burrice minha. Estou ficando velho. Lá em casa a única coisa que eu faço é o café da manhã. Acordo antes de todo mundo, compro o café e o leite, preparo, tomo, e deixo no fogão para a patroa.

— Ah, Guaraci era muito inteligente, estava no quarto ano de Medicina... Falava inglês e francês. Eu e a minha patroa fomos outro dia a Guarujá, aquilo é uma beleza. E depois eu arranjei uma carona num avião da FAB e fui conhecer Belém do Pará. Se você quiser tomar uma boa cachaça, daquela que eu trouxe de Paraty, é só aparecer lá em casa, na Penha. Meu nome está no catálogo. Nós levamos uma amiga nossa, dona Iracema, e ela voltou deslumbrada de Paraty. Ah, Vitória cresceu demais. No nosso tempo era melhor. Quem diria, hem? Guaraci... Faz 12 anos... Estava no quarto ano de medicina...

jose-carlos-oliveira