Fonte: Todas as crônicas: Aquarelas e outras crônicas (1859-1878). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2021, vol. 1, pp. 222-224. Publicada, originalmente, no Diário do Rio de Janeiro, de 10/10/1864.

Dai-me boas semanas e eu vos darei bons folhetins.

Mas, que se pode fazer no fim de sete dias chochos, passados a ver chover, sem acontecimento de natureza alguma, ao menos destes que tenham para o folhetim direito de cidade?

Gastou-se os primeiros dias da semana a esperar o paquete — e o paquete, como para punir tão legítima curiosidade, nada trouxe que estivesse na medida do desejo e da ansiedade. Veio apenas a notícia de um casamento real no norte da Europa, que muita gente olha como um prenúncio da formação do reino escandinavo, mas que eu não sei se dará em resultado exatamente o contrário disso, isto é, a supressão de uma monarquia constitucional em favor de uma monarquia autocrática.

Aí vou eu entrando pelo terreno da política torva e sanhuda. Ponto final ao acidente.

Mas — como dizia eu — que se pode fazer depois de uma semana tão vazia como a cabeça do rival de André Roswein?

Diz Alphonse Karr que depois de encerradas as câmaras e posta a política em férias, os jornais franceses começam a descobrir as virtudes e os milagres; aparecem os atos de coragem e abnegação, e as crianças de duas cabeças e quatro pés. A observação é verdadeira, talvez, mas para lá; o Rio de Janeiro, em falta de política, nem mesmo se socorre da virtude e dos fenômenos da natureza. Tudo volta a um silêncio desolador; rareiam os acontecimentos, acalma-se a curiosidade pública.

Assim que foi com profundo desgosto que eu fiz hoje subir à minha varanda a musa gentil e faceira do folhetim.

Casta filha do céu, que vês tu na planície? Perguntei-lhe como no poema de Ossian.

A infeliz desceu com ar desconsolado e disse-me que nada vira, nem a sombra de um acontecimento, nem o reflexo de uma virtude.

Perdão, viu uma virtude.

Não sei em que lugarejo da Bahia reuniu-se o júri no prazo marcado e teve de dissolver-se logo, porque o promotor de justiça não apresentou um só processo.

Ó Éden baiano! Dar-se-á caso que no intervalo que mediou entre a última sessão do júri e esta, nem um só crime fosse cometido dentro dos vossos muros? Nem um furto, nem um roubo, nem uma morte, nem um adultério, nem um ferimento, nem uma falsificação? O pecado sacudiu as sandálias às vossas portas e jurou não voltar aos vossos lares?

O caso não é novo; lembra-me ter visto mais de uma vez notícias de fenômenos semelhantes.

O Éden, antes do pecado de Eva, não era mais feliz do que essas vilas brasileiras onde o código vai-se tornando letra morta, e os juízes verdadeiras inutilidades. Onde está o segredo de tanta moralidade? Como é que se prova tão eficazmente a higiene da alma? Há nisto matéria para as averiguações dos sábios.

Mas — juste retour des choses d’ici-bas — talvez que na próxima sessão do júri, a vila que desta vez subiu tanto aos olhos da moralidade, apresente um quadro desconsolador de crimes e delitos, de modo a desvanecer a impressão deixada pelo estado anterior.

Tudo é possível neste mundo.

Em falta de acontecimentos há sempre um acontecimento que pode entrar em todos os folhetins, e ao qual já me tenho referido muitas vezes até com risco de monotonia.

É um dever de que não me liberto abrir os olhos à Câmara Municipal a respeito de uma coisa que não é favor, mas dever de tão alta instituição.

Se a Câmara Municipal não tem por obrigação cuidar do município, tomo a liberdade de perguntar para que serve então, e se é para continuar a viver do mesmo modo que os cidadãos de quatro em quatro anos vão deitar uma cédula à urna eleitoral.

Longe de mim negar o que a Câmara tem feito, mas também longe de mim a ideia de ficar mudo diante do abandono em que certas necessidades municipais estão.

O caminho do Catete, que um homem de espírito chama caminho apoplético, é por assim dizer o resumo do estado geral da cidade. As folhas reclamam todos os dias contra o descuido da Câmara e dos seus agentes, mas é como se pregasse no deserto.

Todos os sentidos de que aprouve à natureza dotar-nos andam perseguidos e em guerra aberta com a poeira, a imundície, os boqueirões, etc.

Ah! a imundície! Como Lucrécia Bórgia aos convivas de Gennaro, a Câmara Municipal tomou a peito dizer aos fluminenses, depois que lhes alcança os votos:

Messeigneurs, vous êtes tous empoisonnés.

E fala verdade.

Quando se anunciou a chegada dos augustos noivos de suas altezas disse eu que a Câmara tratasse de fazer com que vestíssemos roupa lavada, de algodão embora, mas coisa mais limpa do que os mulambos que nós temos a honra de receber das suas ilustríssimas mãos.

Sobreveio o período eleitoral, e manifestou-se a grande febre no município. Então perderam-se as esperanças. A soberania popular — frase que os tipógrafos de todos os países já estão cansados de compor, e os leitores de todos os livros e jornais cansados de ler —, a soberania popular abafou frase que grito da necessidade pública, e ninguém achou mau o caminho que ia de casa à paróquia.

A Câmara, porém, mostrou-se compenetrada do alto papel que se lhe destinou, e lembrou-se de convidar os munícipes para solenizar o casamento de sua alteza imperial que, como os leitores sabem, terá lugar no sábado.

Constroem-se arcos e coretos em vários pontos da cidade, desde o Aterrado até o largo do Paço, mas essas construções deviam ter sido precedidas de alguns melhoramentos, a fim de não ter lugar a aplicação daquela cantiga popular:

Por cima muita farofa, etc.

Demorar-me neste assunto seria aborrecer os leitores. A primeira condição de quem escreve é não aborrecer.

Tous les genres sont bons, hors le genre ennuyeux.

machado-de-assis