Há um século, em 1958, o 31 de dezembro era véspera de feriado, isto é, trabalhava-se menos a fim de se descansar no dia seguinte. Os antigos, como se sabe, esfalfavam-se num trabalho penoso de seis dias e meio por semana, com um mínimo de oito horas diárias.

Não existindo ainda qualquer estabilizador de emoções, a confusão de sentimentos era geral: à melancolia se misturava uma aflita necessidade de ficar contente. Era cômica, se bem que dramática, essa busca de alegria num mundo ainda inadequado ao bem-estar, um mundo de técnica primitiva, dividido em nações que se devoravam, desajustado pela ameaça de guerras, um mundo insciente, com a cibernética dando os seus primeiros passos, o sistema solar quase desconhecido, um mundo no qual a fome coexistia com o luxo, de extraordinária instabilidade psicológica (os psicanalistas ganhavam muito dinheiro), de economia anárquica, de preconceitos inacreditáveis, com a juventude ainda ignorando que lhe cabe a educação dos mais velhos; um mundo, enfim, que fez sobre a época moderna as profecias mais ridículas.

Interesse relativo para o leitor teria a descrição de como celebravam o fim do ano as classes ricas e pobres (estas últimas costumavam receber gêneros e brinquedos às vésperas da passagem do ano). Quanto à classe média, esta usava de expedientes diversos para obter o produto mais gravoso daqueles tempos: a alegria. Um deles era lançar mão do crédito comercial, pago em prestações no ano entrante, a fim de se ter um fim de ano à altura dos anteriores. Nessa perseguição da alegria, as famílias desde muito cedo colocavam no Hi-Fi (espantoso aparelho, existente nos museus de fonologia) objetos negros e circulares (elepês), que mais ou menos reproduziam peças musicais. Em seguida, homens e mulheres acendiam pequenos cilindros de papel recheados de fumo, sugavam a fumaça, enviando-a aos pulmões, para devolvê-la ao ar em baforadas, grotescas, mas perfeitamente naturais em 1958. Como o tabaco continha substância tóxica, o fumo embotava ligeiramente os nossos bons avós, enevoando-lhes a mente, pois a questão vital era diminuir o impacto da realidade. A providência imediata era a ingestão de alguns cálices ou copos de álcool, adicionado a diversas misturas líquidas, buscando-se nesse ato reduzir-se um pouco mais atuação da consciência. Sem o fumo e a bebida, os homens do século XX eram ainda mais tristes do que com eles.

O dia 31 era ocupado de pequenos afazeres inquietos, à espera da noite. Já nessa época as mulheres preferiam as calças compridas em suas compras, embora os homens ainda desconfiassem do uso de saias, que só, muito timidamente, ousavam vestir nos dias de carnaval.

As superstições eram fecundas. Muito se falava, por exemplo, em entrar no Ano-Novo com o pé direito. Acreditava-se em voto de felicidade: as pessoas amigas enviavam umas às outras cartões coloridos com augúrios de boa sorte. Os dizeres mais frequentes desses cartões eram Boas Entradas e Feliz Ano-Novo. Os modernos historiadores ainda não atinaram com o significado preciso de “boas entradas”; quanto ao “feliz Ano-Novo” é plenamente justificado numa civilização primária, acometida de numerosas e variadas desgraças. “Feliz Ano-Novo” era uma fórmula sintética, pela qual se augurava ao outro uma vida longa de 80 anos (sic), sem a tragédia do câncer e das doenças do coração, sem que se perdesse o emprego ou se fosse à falência. Podia também significar, no caso de certos homens importantes, o desejo de que as autoridades continuassem a fazer vista grossa sobre falcatruas conhecidas de todos.

O traje elegante masculino merece referência. Chamava-se smoking, pois o peitilho da camisa era franzido. Entre nós, era também denominado black tie, embora não se usasse o tie, mas a bow, isto é, um pedaço de pano enlaçado à maneira das asas de uma borboleta preta. A vestimenta era constituída de calça e casaco, de talhes e detalhes especiais, confeccionado em lã grossa. A roupa era tão severa, o seu tecido de tal maneira quente, a sua confecção a tal ponto incômoda, que certamente o smoking devia estar relacionado a símbolos que ainda não chegamos a decifrar. Uma vantagem indiscutível do smoking era peneirar um pouco a condição financeira dos convidados, embora aparecessem comerciantes espertos que os alugavam; outra era evitar que as pessoas de bom-senso comparecessem a tais festas.

A rigor, o melhor da festa de Ano-Novo (réveillon) consistia em esperar ansiosamente a meia-noite, quando sinos repicavam, buzinas atroavam, e pequenos e ruidosos explosivos espocavam no ar. Diversas famílias se reuniam na casa da família mais festiva entre as de suas relações. Servia-se um galináceo chamado peru, de carne muito branca, dura e insípida. O peru (gallipavo meleagris) foi imolado em tais proporções nas festas antigas que a espécie se extinguiu. E foi por falta de peru que o rito tradicional do Ano-Novo entrou em decadência.

O ponto culminante dos festejos de Ano-Novo era o beijo. À meia-noite, com uma tolerância de dez ou quinze minutos, a fim de que todos se servissem, permitia-se que as pessoas amigas e conhecidas se beijassem, solteiras e casadas. Mas isso somente nas grandes cidades e entre os níveis mais sofisticados da população urbana. Dava-se o nome de beijo à justaposição anatômica dos músculos orbiculares em estado de contração. A estranha prática era tida por excepcionalmente excitante, embora nas festas de Ano-Novo todos procurassem disfarçar, superiormente, qualquer interferência desse ato com a libido. Mas, os tempos eram pudicos, e o beijo teve a sua voga.

Depois do beijo, a festa perdia sensivelmente em graça. Os casais se empenhavam em embriagar-se e se retiravam com a madrugada, sem saber ao certo se a festa fora muito divertida ou não. Mesmo porque esta incerteza corroeu de melancolia o século passado.

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