Você iria a uma fogueira de São João dentro da refinaria de Manguinhos? Se você fosse romano nos tempos de Nero, compareceria às matinês do Coliseu, caso não existisse um muro, um fosso ou um alambrado separando as feras dos espectadores?

Pois os dirigentes do futebol brasileiro mandam os nossos jogadores a um coliseu de perigosa promiscuidade, com uma diferença: no estádio do River Plate, em Buenos Aires, as feras assistem aos espetáculos, enquanto 11 jogadores correm em campo, certos de que a qualquer instante podem transformar-se em mártires. São 11 candidatos ao fim de Santo Estêvão. É como lhes digo: dezenas de milhares de torcedores podem estar dentro do campo no decurso impoliciável de dois minutos; em mais três minutos, a multidão pode massacrar 11 jogadores, 11 reservas, o técnico, o médico, o massagista, o roupeiro, o preparador físico; então, entrará a polícia, as vítimas serão recolhidas, e os cartolas começarão a protestar através do rádio, da imprensa e de documentos oficiais, rompendo relações esportivas com os argentinos.

Não quero dizer que estes últimos, os argentinos, sejam mais furiosos torcedores de futebol do que nós; se os chamo de feras é porque qualquer multidão latina, e sobretudo sul-americana, quando açulada pela paixão futebolística, pode virar fera, está a um passo da fera. Na Holanda ou na Suécia, um alambrado num campo de futebol seria quase um excesso de zelo; em qualquer país da América do Sul, no entanto, assim como em Portugal, na Espanha ou na Itália, o alambrado ou o fosso é de uma necessidade preliminar, uma condição sem a qual o chefe de polícia não poderia autorizar a realização de partidas de futebol. Estranho aparentemente, quem tinha o direito de protestar contra a ida dos jogadores brasileiros a Buenos Aires era o nosso ministro do trabalho, pois a verdade é que o estádio do River Plate (o monumental de Nuñez, como o chamam os portenhos) não apresenta as condições mínimas de segurança à prática do trabalho chamado futebol. Os jogadores são profissionais, os clubes têm neles um patrimônio financeiro (impossível neste caso evitar os lugares-comuns da situação evidente), a integridade física é a garantia que tem cada um para continuar no seu ganha-pão. Colocar em jogo tudo isso, e não o resultado da partida, é insensatez. Arriscar a validade de atletas profissionais em troca de alguns milhares de dólares é uma besteira.

Quem raciocina pela metade irá dizer que não houve violência nenhuma e que tanto os assistentes como os jogadores argentinos se portaram razoavelmente bem na partida final, quando mais sinistros eram os prognósticos da imprensa brasileira. Isso não quer dizer absolutamente nada. Sem pesar as circunstâncias que determinaram o bom comportamento argentino na decisiva, o fato é que o Brasil comete sempre um ato de desvario quando coloca o seu time num campo sem qualquer defesa contra a multidão. Ninguém defenderia a inocência da roleta-russa só por ter presenciado alguém a praticá-la sem um resultado funesto. Não houve mortos nem feridos no jogo final do campeonato Sul-Americano, mas poderia ter havido, seria perfeitamente natural que houvesse. Os protestos que os dirigentes estariam lançando no momento, caso o massacre se registrasse, não atenuariam a estupidez inicial, que foi a de pactuar com a roleta-russa proposta pelos patrocinadores do torneio de Buenos Aires. A agulha da arma foi bater no espaço vazio; isso não constitui um incentivo para que os brasileiros continuem a participar de torneios suicidas. Não esperemos a detonação fatal para tomar juízo. Como campeões do mundo, os jogadores brasileiros passaram a despertar uma perigosa gana por parte de seus irmãos continentais. As garantias elementares precisam ser asseguradas de qualquer forma.

Por outro lado, não é possível jogar verdadeiro futebol quando cem mil pessoas, a torcer apaixonadamente pelo quadro contrário, podem entrar em campo, fazendo valer os violentos argumentos da paixão, isto é, apelando para a ignorância dos castigos corporais. Assim, esportivamente, os espetáculos em estádios sem defesa pouco representam.

O futebol brasileiro emancipou-se quando se construiu o Maracanã; civilizou-se quando os nossos jogadores perderam um campeonato mundial para os uruguaios com lágrimas nos olhos, e não com murros e pontapés. Temos o direito e o dever de exigir que os nossos rivais sul-americanos façam o mesmo. Mas vá falar em direito e dever com um cartola; ele pensa imediatamente que nos referimos a dólares e estadas em hotéis de luxo.

paulo-mendes-campos
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