Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil,  de 27/09/1974.

Ainda é uma cidade, esta em que você pode fugir rapidamente do nervosismo do rush, alterando bruscamente o destino dessa fuga. Às seis horas da tarde, os automóveis se precipitam em fileiras que se fazem e desfazem ao capricho dos obstáculos que há na frente. Ficaram uns homens nos pequenos bares do Centro, à maneira dos londrinos; dali só partirão depois das oito, quando os caminhos estiverem mais livres. Mas a maioria segue a bordo desses rios de lata que escorrem para a zona sul, onde há outros bares propícios à retemperação do corpo e do espírito. Ou vão direto para suas casas, onde, depois de uma chuveirada, ficarão de olho grudado na televisão.

Ava, porém, me apanha na porta do escritório e propõe um programa diferente. Seguimos pela avenida Atlântica, rolamos por Ipanema, coleamos na avenida Niemeyer, descemos São Conrado e dali começam umas curvas no anoitecer escuro, entre árvores esparsas e arvoredos compactos, tudo cheirando a mato queimado. Pegamos uma linha reta em alta velocidade, entre postes de eletricidade, e vamos indo, já com a sensação de que estamos indo para muito longe.

Uma curva, um declive, e deslizamos numa ruazinha estreita e com árvores; de um lado o casario quase silencioso, embora as luzes estejam acesas, e do outro a enseada dolente, sob o céu de poucas estrelas. Sentados na amurada construída à feição de um mirante, ficamos longo tempo olhando o mar. E o céu. Entre as poucas estrelas desta noite primaveril há uma que já não pertence a todos: acabo de presenteá-la a Ava, a companheira que gosta deste silêncio trabalhado pelo indolente ronronar das águas.

Acolá, à esquerda, na faixa mais escura da enseada, há um barquinho do qual só as luzes balouçam e tremelicam. Nós o adivinhamos sem lhe vermos o vulto. Ava tem um barquinho — e eu, o meu sonho é ter um barquinho. Ava ao longo dos dias vem com silêncio, só usa palavras que valorizam esse silêncio com o qual costuma falar-se. Eu tenho palavras, que gasto e desgasto, e são flechas, e firo, e me referem: só quando me aproximo de alguém que traz em si o silêncio (acontecimento tão raro!) é que vejo instalar-se em mim o silêncio que me faz bem.

Os minutos passam. Nada acontece, a não ser a estrelinha agora destacada no céu, circunscrita à generosidade com que a subjuguei: não uma qualquer, mas a estrelinha de Ava. Não acontece nada em Guaratiba às oito horas da noite, no meio da semana. Só Ava e seu companheiro sentados a mirar o mar, só o silêncio em dois corações, e bem assim a tremelicante cumplicidade da estrelinha.

Há um barzinho, o Arrastão. Está vazio. Sentamos num canto e pedimos vinho branco. Observo em Ava um detalhe sem importância, mas que se apresenta extremamente conforme o sentimento calmo que me habita: ela esconde as orelhas sob os longos cabelos, porém usa brincos nas orelhas. Hoje em dia as moças são assim, escondem os brincos. O vinho está gostoso. O garçom pergunta se não queremos um peixinho frito para tira-gosto. Não queremos.

De novo na estrada. Em silêncio. Deve ser isso a felicidade.

jose-carlos-oliveira