Fonte: Caderno B, coluna "O homem e a fábula", Jornal do Brasil, de 12/12/1962.
E a bossa nova nos Estados Unidos — está fazendo sucesso ou fracassou? Informações e opiniões desencontradas circulam neste momento na imprensa carioca, mas tudo não passa de projeção, no sentido psicanalítico: quem não gostou nunca da bossa nova, afirma que ela fracassou nos States, e quem sempre gostou afirma justamente o contrário. Eu, por mim, não dou a menor pelota para a reação do público norte-americano: se eles detestam ou adoram a nossa nova música, O problema é deles; quanto a mim, sempre fui fã dessa juventude que modificou completamente o estilo da nossa música popular.
Estava eu ao lado da minha namorada — a inesquecível, aquela que perdi —contemplando seus olhos, em silêncio, numa sala suspensa numa noite de abril de 1957, ou 8, e um rádio estava ligado, mas tão baixo, e nós tão apaixonados, que o som era um modo penumbroso do silêncio continuar silente — uma camada mais espessa da quietude geral; minto: alguma coisa escorria, musical, e me fazia sofrer como só as pessoas muito felizes ousam sofrer — sofrer machucado, sentindo aquela dorzinha que dá no coração quando estamos diante da pessoa querida: e eu ouvindo aquela música que era uma mistura de tristeza e alegria e penumbra e surdina — suspiros da alma que a alma transparecia claramente atrás dos olhos dourados; não sei se todas as almas têm a mesma cor: a daquela mulher, ao menos, era meio azul e meio violeta — mas um meio azul e um meio violeta misturados com algo mais escuro — e no entanto mais tênue — não como a cor de uma orquídea, mas como a cor da sombra que uma orquídea projetasse num muro dourado. De repente alguma coisa sucedeu na sala: — o silêncio se pôs a cantar; tentei resistir, porque só queria ver, ouvir e pensar aqueles olhos, mas não foi possível; lentamente regressei daquele recanto cheio de flores onde as crianças são eternas, e recuperei a espessa consciência de estar numa sala, numa noite de abril. E ficamos os dois ouvindo aquilo que vinha do rádio — uma voz humana a cantar como nunca ninguém catou uma canção popular: cantando com uma pobreza de meios que só posso qualificar de franciscana, sem nenhum charme, sem nenhuma vontade de ser cantor: simplesmente pronunciando as sílabas e entoando a meio-dia. O resultado, porém, era surpreendente: aquela indolência, aquela monotonia, aquela tristeza ou constrangimento (tive a impressão de que o cantor estava zangado com toda a música popular brasileira, ou com a forma pela qual os seus colegas costumavam cantá-la até então), tudo o que ele fazia para ser tedioso, fazia-o, a ele, encantador. Fiquei emocionado e agradecido.
Creio que nessa época ainda não se falava em bossa nova, e de qualquer modo estou certo de que foi nesse dia que pela primeira vez tomei conhecimento de alguma coisa nova na música popular brasileira. O cantor chamava-se João Gilberto e a canção era Chega de Saudade. Hoje em dia, perfeitamente familiarizado com a bossa nova, considero João Gilberto o maior cantor do mundo.
Devo dizer, finalmente, que adoro o novo estilo dos nossos jovens compositores e cantores: eles chegam, sentam no chão, pegam a viola e começam a cantar, sem escândalo e sem farol, e ainda me ajudam a não ter mais vergonha de ser desafinado — eu que era vaiado por toda a minha família quando, na adolescência, trancado no banheiro, me punha a imitar Vicente Celestino...