Imagem incômoda/V

“Tu não me buscarias se já não me houvesses encontrado”. Este pensamento, ou algo parecido, de Pascal, apresentou-se em sua ambígua luminosidade a João Brandão, após muita busca e muito malogro. O cavalo desaparecido habitava em seu íntimo, João o levava consigo, pouco importando que a aparência física do objeto se subtraísse a seu olhar. Desistiu, pois, de procurá-lo. Não se procurando, acha-se. Um amigo de Juiz de Fora contou-lhe que vira desembarcar ali, de viatura militar, volumoso objeto recoberto de lona, transportado sob escolta munida de metralhadoras. Era o cavalo, evidentemente.

JB dispõe de boas relações em Juiz de Fora. Seguiu para lá, disfarçado em comprador de antiguidades. Para não comprometer ninguém, deixaremos de relatar como foi que ele, sem punhal automático na biqueira do sapato, sem raio laser e outros babados próprios de Flint e James Bond, conseguiu penetrar às 23h na dependência da IV RM onde se guardava a sete chaves o animal. Também omitiremos as circunstâncias em que o retirou de clausura e iniciou a volta ao Rio de Janeiro.

Anotaremos apenas que a Lua refletida no Paraibuna parecia acumpliciar-se com a aventura: não era bastante clara para denunciar nosso homem, nem tão enrustida que o fizesse perder o rumo. Lua docemente mineira. Daí, quem sabe? Talvez as próprias autoridades, cansadas de guardar o cavalinho, e não sabendo o que fazer dele, houvessem favorecido o rapto. O cavalo tinha a especialidade de dizer coisas desagradáveis ou tristes, que aconteciam logo depois. Se fosse possível inverter-lhe o mecanismo, de sorte que passasse a dizer amenidades, poderia ser aproveitado na Agência Nacional. Os técnicos do Instituto Federal de Otimismo, que funciona junto ao Palácio da Alvorada em regime de tempo integral, consultados, opinaram negativamente. Conservá-lo era inquietante: como deixar no interior de praça de guerra um ente mágico, perturbador? Preferível soltá-lo, mantendo-o sob vigilância da DOPS; seu proprietário seria o primeiro a não querer divulgar-lhe o dom profético: dentada de cavalo não é mole não.

Lá vai pela estrada, de carro, João com seu cavalinho. Pensa o que fará dele. Sabe que no futuro não terá sossego em casa. Amigos acabarão desvendando o segredo, procurarão transformar o animal em oráculo de cada um. E ele, João, sofrerá as consequências no lombo. Isso não contando com os agentes federais, que decerto hão de querer recapturar a presa (JB ignorava o pensamento último da revolução a respeito do cavalo incômodo). E, deprimido, suspirou, plagiando Manuel Bandeira:

— Nunca mais outrora a minha vida teria sido um festim!

Num esforço de imaginação já se sentia tão fatigado — sonhou o absurdo: voaria até Barreira do Inferno e, por artes de berliques e berloques, introduziria o cavalo num foguete meteorológico, salvando-o da ação repressiva do Poder Público. Levá-lo até Cabo Kennedy e colocá-lo no bojo de um satélite artificial, ah, seria ótimo. Mas excederia о absurdo. Mesmo o absurdo nacional, porém, era demais para suas fracas forças.

Meia-noite. João para o carro à beira da estrada e tira o cavalo da grade. Quer conhecer pelo miúdo trabalhos e aflições que o esperam na Guanabara, nas próximas 24 horas. Para espanto seu e nosso, que não esperávamos tal coisa, o cavalo estava sem rabo. Um coronel cortara o rabo do cavalo. E o cavalo, sem rabo, não profetizava mais nada. Apenas ferrou uma big dentada no posterior de João Brandão, que não soubera impedir a ablação do apêndice divinatório. Na dor da mordida, João deixou cair o ex-mágico animal na estrada. Logo se transformou em cacos, e os cacos em pó, sob as rodas que passavam. Quem se decepcionar com o fim insignificante deste caso, que nos desculpe: todos os casos reais têm fim insignificante.

carlos-drummond-de-andrade
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