Imagem incômoda/IV

A cauda de um cometa e a cauda falante de um cavalo equivalem-se: ambas fascinam o ser humano. Deprimido embora pelos anúncios que lhe transmitia o raro animal, João Brandão não lograva fugir ao seu encantamento. Passava o dia esperando meia-noite e, em chegando esta, interrogava o futuro próximo. Na rua, sua fisionomia filtrava mistério, pelo que um agente federal suspeitou que ele cogitasse de subverter o regime promovendo eleições diretas ou outra enormidade no gênero. Daí a pouco era convidado a depor em lugar secreto, sobre seus secretos desígnios. Não se surpreendeu: o cavalo já o prevenira de que teria complicações com o SNI e que algo de grave iria aconteсеr.

Trataram-no com a maior cortesia; como o interrogatório se prolongasse por oito horas a fio, serviram-lhe galinha assada e sorvete de morango. João nada revelou, sabendo que a inconfidência lhe custaria dentada de cavalo. Isso não impediu que seu apartamento fosse visitado e vasculhado, e se descobrisse o cavalo. Objeto de cerâmica, daquele tamanho, era anormal, pelo que os agentes o levaram para averiguação. O aparelho de identificação eletrônica detectou os poderes sobrenaturais do animal, e logo o ministro Gama e Silva o requisitou para saber como seria o dia seguinte e os mais seguintes do governo da república.

O cavalo quis furtar-se à curiosidade ministerial. Não era informante público, e a infinita operosidade do marechal Costa e Silva e seus auxiliares excedia sua capacidade individual de prever todo um dia de realizações.

— Fale assim mesmo, pediu-lhe o professor Gama.

— Posso não. Coisa demais.

— Fale, fale.

— Amanhã ele vem ao Rio para descansar de Brasília, ou vai a Brasília para descansar do Rio. Inaugura uma fábrica de fósforos sem fogo, distribui medalhas e recebe cumprimentos. Baixará a taxa de juros a 1/2% e subirá o dólar a 4,50. A inflação será contida às 10h da manhã; os preços subirão às 12h e às 15h30, mas isso não terá nada que ver com a inflação. O Andreaza...

— Chega — interrompeu Gama. Esse cavalo não tem nada de original. Pensei que ele fosse dizer alguma novidade, e fica nesse papati patatá!

O animal — que a esse tempo já fora fichado, fotografado, filmado e declarado elemento subversivo de segundo grau — para ser de primeiro teria de passar da palavra à guerrilha — foi transportado a lugar incerto e não sabido.

Aqui começam as idas e vindas, os mil passos preocupados de João Brandão para restituir à liberdade o profeta de cauda. Sentia-se moralmente responsável por sua segurança, e até já lhe nutria afeição. Correu ao dr. Plínio Doyle para que este requeresse a medida legal conveniente. O advogado fora a Friburgo em busca de documentos sobre a estada de Machado de Assis naquela cidade em 1878, e sua pesquisa nos arquivos levaria duas semanas. João apelou para outros causídicos. Todos se esquivaram. João fora detido? Não. Então, como requerer habeas corpus? Para cavalo não cabe requerer habeas corpus. (Isso, depois de recorrer ao general Garrastazu, ao líder Ernâni Sátiro, seu comensal nos almoços da Editora José Olympio, ao dr. Rondon Pacheco, a N. Sª do Perpétuo Socorro. Em vão.) Que fazer, que fazer? Caminhamos para o desfecho.

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