Fonte: Jornal do Brasil, de 7/01/1973.

Ninguém até agora, que eu saiba, procurou aproximar as duas tragédias que assombraram o mundo no fim do ano, a dos Andes e a da Nicarágua, a fim de pensá-las simultaneamente. No entanto, um tal exercício pode nos conduzir a interessantes conclusões envolvendo a moral e a justiça dos homens, nestes nossos dias de ingente sofrimento servido à humanidade inteira, através dos meios de comunicação maciça.

Tanto nos Andes quanto em Manágua, o que vemos em primeiro lugar é o homem reduzido à nudez absoluta, em cósmico desamparo diante da natureza. Em tais condições, depende ele exclusivamente do próprio homem: de si mesmo e do seu próximo. De sua resistência, de seu valor, de seu engenho, de sua perseverança e finalmente de sua certeza de não estar sozinho no planeta. Como nas cavernas.

Vejamos o que houve na solidão branca, entre as montanhas eternamente geladas. Um avião cai. Dentro dele, alguns atletas amadores, jogadores de futebol americano, graças a Deus jovens e saudáveis. Deus escolhe entre eles os que devem morrer no curso da queda — e mais tarde, entre os sobreviventes, aqueles condenados a conhecer a morte sob a avalanche. Sobram 16. O socorro do mundo não vem. Logo se organizam, já que estão ligados há algum tempo pelo espírito de equipe. Os meios de que dispõem para sobreviver são os destroços do avião e mais nada. Água se arruma, derretendo a neve. Agasalhos, no próprio avião os improvisam. Moral? Bem, a moral aqui é uma questão de fé: ou se tem ou não se tem. Ou bem se acredita que é preciso viver a qualquer preço, por causa da misteriosa força que impele os seres humanos para a frente, sempre mais para a frente, ou então... nada mais. Ou tudo ou nada, efetivamente.

Os 16 de que falamos tinham fé. Queriam viver, quando nada por serem jovens, por não haverem ainda conhecido todas as delícias da existência. Dê-se também à juventude, principalmente a atual, o direito (que ela aliás se arroga) de desprezar uma série de preconceitos e regras que outrora conferiam fundamento à sociedade.

Está pronto o cenário. Os rapazes olham em torno e nada veem: nada, a não ser montanhas inacessíveis e neve, neve por toda parte, até onde alcança a vista, e silêncio, e lá em cima um céu igual aquele que Jó contemplou. Nada. exceto alguns cadáveres e a fome que rói os desastrados. A tentação se aproxima. Cada um, de per si, tem uma ideia — a mesma ideia chegando a cada coração amedrontado. Mais tarde fala-se nisso abertamente, isto é, com um último resquício de pudor e cautela. Lembram-se da Última Ceia? Lembram-se da Comunhão? Jesus Cristo repartiu seu corpo com seus discípulos... Sua própria carne e seu próprio sangue...

Alguém então recorda que estuda medicina. Conhece anatomia (como Rembrandt, que morreu de fome), sabe onde estão as proteínas indispensáveis à sobrevivência. Sendo assim, a profanação já não parece tal. O problema principal está resolvido. É tudo uma questão de fé em Deus e habilidade cirúrgica...

Não pretendo de modo algum condenar esses rapazes, pois acredito que agiria da mesma forma se, estando na mesma situação, obtivesse para as minhas ações a cumplicidade dos meus companheiros de infortúnio. Eram membros de uma sociedade secreta, abandonados pelos seus semelhantes conforme tinham escutado no rádio. Que diabo! O homem que vai à Lua, em meu nome, não tem capacidade para me apanhar aqui, a apenas dez dias de marcha a pé? Que compromisso tenho eu com o homem? Onde está a sua famosa solidariedade? Onde estão os prodígios de sua técnica?

Certo. Acabaram reencontrando os caminhos da salvação e foram recebidos como heróis, o que de fato são. Mas ao mesmo tempo, em Manágua... (Continua amanhã).

jose-carlos-oliveira