Fonte: Jornal do Brasil, de 8/01/1973.

Manágua, capital da Nicarágua, 325 mil habitantes. Mas vejam bem, são 325 mil habitantes separados em grupos sociais bem definidos: milionários, ricos, pobres, remediados e miseráveis. América Central. Vejam bem: aproxima-se o Natal. Qualquer brasileiro sabe o que isto significa. Dos miseráveis até os pobres, há famílias em desavença por causa da frustração. Há castanhas, há nozes, há perus, há uma infinidade de objetos que se oferecem nas vitrinas — objetos modernamente indispensáveis a qualquer um. Mas não há dinheiro.

Seja lá como for, a Noite vai chegar e sempre se encontrará um jeito de festejá-la condignamente: à pobreza não falta imaginação. É preciso conformar-se ao destino que Deus nos deu. Pensando bem, até que os ricos estão no direito de serem ricos. Quando não são filhos de pais ricos, que por sua vez foram filhos de pais ricos, trata-se de pessoas que estudaram — pessoas que conhecem anatomia, como geralmente ocorre, por exemplo, no Uruguai. Os ricos estudam anatomia e ainda se divertem jogando rúgbi. E os pobres que se arranjem: é a lei, a lei que manda dar a cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo seus próprios méritos — a não ser que você tenha um pai rico, pois neste caso não precisará de mérito algum para fruir os bens do mundo. Todas as leis são assim, compreensíveis para uns e incompreensíveis para os demais; inclusive as leis de Deus.

Assim, os habitantes de Manágua esperam uma noite de Natal, não se pode dizer propriamente feliz, mas em todo caso pacífica. O Natal é justamente o momento de conceder repouso às nossas infelicidades. Sendo assim, todos dormem, e então a terra treme e o mundo desmorona. Desmorona literalmente: não fica pedra sobre pedra. No momento seguinte, em todas as ruas, multidões correm para todos os lados, enquanto outras multidões agonizam sob os escombros. O jogo se ergue na direção das estrelas indiferentes. Espetáculo que escapa à capacidade humana de compreender: cada qual, entre os vivos, pensa apenas em escapar, embora ignore de quê e para onde. Sabe-se apenas que Manágua, esta cidade erguida ao custo de imenso esforço humano, deixou de ser. Terminou.

Então... “Não tendo alternativa, o sol voltou a brilhar” (Samuel Beckett). “Mas no amanhã nada houve; nada, exceto a alba, o despontar do dia, o próprio amanhã” (William Faulkner). Entre escombros, incêndios e cadáveres, as multidões seguiam desnorteadas em todas as direções. Mas eis que os miseráveis, os remediados, os muito pobres, a princípio tangidos pela própria dinâmica do êxodo, retrocedem. Manágua terminou! Não há mais ricos, logo ninguém mais é pobre. O fim do mundo pertence à miséria. Nos supermercados, nas lojas, nas residências particulares, há comida e bens de consumo para os que ficaram. Há muito, esses se habituaram ao fim do mundo: já nasceram nele, sentem-se em sua própria casa.

Uns se beneficiam do saque. Outros são avisados de que a lei não desmoronou. A lei que rege os destinos da Nicarágua, justa ou injusta (pouco importa), eleva-se intacta no meio das ruínas fumegantes. Os saqueadores são fuzilados. São fuzilados, vejam bem, porque não queriam morrer.

Eis a forma pela qual se entrelaçam as duas meditações: uma sobre a catástrofe dos Andes, a outra sobre a tragédia da Nicarágua. De um lado, consideramos lícito comer carne humana, infringindo embora todas as regras da moral moderna; de outro lado, proíbe-se ao miserável servir-se do que restou de um mercado comprovadamente sem futuro algum.

Que cada qual faça o seu próprio juízo sobre os dois acontecimentos. Eu vou fazer o que sempre fiz: embriagar-me — visto que, como dizia um poeta inglês, o espírito humano não suporta tamanha realidade.

jose-carlos-oliveira