— Sabe? A senhora está completando cem anos... Que bela idade, fora do tempo. Já não é uma etapa da velhice. Os velhos não costumam chegar a essa altura; os que o fazem são uns exagerados, e pagam caro o exagero. Cem anos, eu diria que é marco da extrema infância, a das meninas que estão acabando de nascer. Vou mais longe: que não nasceram ainda, nem sequer foram geradas; flutuam na possibilidade do ser.
É uma conta que não se conta. Poderíamos talvez chamar-lhe: um conto. A seu redor, a imaginação borda imagens, cenas, episódios inteiramente desligados da matéria comum. Para que recorrer à memória? Ela é falha e pobre; seleciona pedaços descontínuos, ecos, omissões, gravetos, areia e pó. A senhora está vivendo um conto, em que tudo se desenvolve na projeção — e na perfeição — atemporal.
Que liberdade de ir e vir e voltar e voltear e variar, acima dos caminhos, dos mapas. E que vitória sobre a doença e o desconcerto do mundo. Sofrer ficou sem sentido. Que era mesmo sofrer? Suas próprias alegrias antigas não são mais alegrias, de tão pálidas que se tornaram, na distância. A alegria é outra, agora.
Não saberia defini-la, Feita de quê, como se exprime, é tudo pergunta, mas sente-se a desnecessidade de perguntar, de responder, de conferir. A casa e o país em que a senhora habita distinguem-se exatamente por isso: neles ignora-se a necessidade. Tudo foi provido. Ou antes: o provimento é contingência tão fora de razão quanto a necessidade. Se a senhora precisasse de qualquer coisa, não haveria de obtê-la. Mas não é preciso precisar. As coisas como coisas tornaram-se menos que miragens. A mesma palavra “coisa” esvaziou-se, e em troca surgiu e expandiu-se uma objetividade extra- objeto, esquiva a processos de verificação. A desimportância de nomes e conceitos tornou esse lugar o mais puro e excelente de todos.
Lugar que, por vício de linguagem, eu chamaria jardim, para me fazer entendido aqui. Nesse jardim coloco, a meu modo, o seu aniversário redondo. Deixe-me fazer. Chegam pessoas amigas para cumprimentá-la. De leve, muito de leve. Nem pisam a grama. Que música é essa? Vem das flores, é claro. Flores pintadas, em suas hastes naturais, por fabulosos artistas meus camaradas, quando ainda era viável entre nós concebermos a natureza. Esboça-se uma dança inventada na hora, ou saída da terra orvalhada (é manhãzinha, tudo está nascendo na inocência da cor. Não se alega o não saber dançar. Todos sabem. E dançam. Da raiz de todas as festas possíveis, improvisa-se esta, clara, clara, sol na água, no verde, sol no sol. (Se aparecem doces, doçuras de secretíssimas especiais receitas de tratados conventuais, não é por intenção da aniversariante; é traça minha, balda de quem não é capaz de compreender festa sem gulodice... a senhora desculpe.)
Levou cem anos para se lhe oferecer esta festa. E não é nada. A uma senhora que completa cem anos, que presente se deve dar: os descobrimentos no espaço? os descobrimentos no coração do átomo? canções novas em línguas novas? filosofias mais sábias que as já tentadas e desaparecidas? Se a senhora não precisa de nada, e sua vida está cheia, plena, completa, por que lhe ofereço este passatempo no jardim? se eu mesmo estou de fora desse jardim, e só entre grades e sombras de árvores posso divisar de longe sua infinita paisagem?
De qualquer modo, senhora minha, aqui lhe deixo a vã tentativa de um beijo.