Foi entre 20 e 23 anos que enchi de notas este caderno grosso, de capa vermelha. Era mais profundo e pretensioso do que um abismo. Hoje, relendo-o, não chego a rir-me, nem a irritar-me, mas apenas concluo que, se o tempo, por um lado nos desgasta e nos compromete, por outro lado, a idade nos reduz as ambições e nos equilibra. A renúncia e o bom senso não chegam a ser duas virtudes intelectuais, mas apenas o exercício de certezas meio amargas.

Precisaria de toda a minha vida para estudar um único dos temas apontados neste caderno. Àquela época, no entanto, não conhecia minhas limitações, nem mesmo podia admiti-las. Estava convencido de que, através dos livros, eu compreenderia afinal o mundo e o desespero humano. Porque o homem não podia ser outra coisa senão um desespero absurdo, e era irremissivelmente fútil quem pudesse preocupar-se com alguma coisa que não refletisse a insolvência fundamental do destino.

“Triste” era a mais bela palavra, porque denunciava seriedade e caráter. “Joie de vivre” era uma abjeta e incongruente combinação de palavras. Del sentimiento trágico de la vida era o mais belo título de todos os livros já escritos.

Lia muito, com uma parcialidade que eclipsava a sobras, recolhendo dos autores somente aquilo que correspondesse à minha ideia pessoal da tragédia terrestre, aquilo que saciasse essa vertiginosa sedução que a melancolia exerce sobre a adolescência. “Le bonheur est une monstruosité”. Esta frase de Flaubert, escrita no alto da primeira página, era para mim um programa de infelicidade absoluta.

Até nesta caligrafia reconheço o entusiasmo com que anotava as Cartas a um jovem poeta, de Rilke, tipo de literatura que, hoje, me intumesce um pouco o espírito. Do grande García Lorca amei, sobretudo, os versos mais antigos, mais queixosos e menos bem feitos. Nesta página sobre Proust há apenas uma humilde anotação: “écaille” significa escama. Seguem-se observações abstratas sobre “arte e realidade”, com citações misturadas de Maritain, O. M. Carpeaux, Wilde, Dostoievski, Novalis, Daniel Rops, Unamuno... Já não acho definitivas nenhuma dessas frases, posso dizer mesmo que, entre todos os conceitos que transcrevi aqui, a respeito do real e o irreal em arte, o mais simpático me é o que me parecia mais acanhado: “Realidade significa, para mim, o que é permanente na natureza humana”.

Minha admiração por Ortega y Gasset transformou-se em tédio por esse filósofo precioso de campos de golfe.

Passo correndo por essas notas chinfrins sobre estilo e, ainda mais depressa, por essas notas pomposas sobre “Baudelaire, o amor e o pecado”. Mais adiante, copiei versos de Verlaine, que só pude comprar, por causa da guerra, quando fizeram aqui no Brasil uma edição do poeta.

Tengo verguenza de mi boca triste”, diz Gabriela Mistral, à página 70. E páginas e páginas de transcrições de críticas aos autores que eu julgava, incomparavelmente, os maiores de todos os tempos: Baudelaire, Mallarmé, Valéry e Gide.

Aqui assinalo com a data e o número de páginas os livros lidos em 1945: El habitante y su esperanza, de Neruda, O discípulo de Emaús, de Murilo Mendes, Diário, de Katherine Mansfield, Daphne Adeane, de Maurice Baring, etc. Este último me deixou de tal maneira transportado, que nunca tive a coragem de relê-lo, embora o conserve carinhosamente encadernado.

Vou parar, Maria, por falta de espaço e por falta de ar. Não devia ter começado esta crônica sem fim, truncada e torta como esses dez anos de vida passada, repassada, gasta, errada, vivida inutilmente, confusamente, dispersivamente. O mundo engoliu o teu filósofo, o teu poeta, o teu prosador. Ganho a vida e nem mesmo sou infeliz. Mas me resta o consolo, em certos dias enevoados, de sol baço, de reconhecer um entre todos os sentimentos de antigamente: aquela atroz melancolia que destrói o mundo.

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