A ecologia era esta: vovó me dava doces. Vovó me deu um Menino Jesus de barro. Mamãe comprava palmito para a minha salada de alface. Papai fazia cadernos para que eu estudasse. Tia Zizinha cortava-me as unhas com muito carinho. Tia Nininha costurava meus calções de futebol. Tio Valdemar me levava para ver o Atlético. Tio Tatá me dava pratas de cinco mil réis. Tio João esgrimava comigo no fundo do quintal. Tio Antônio fez uma horta. Meu primo Hélio me deu o primeiro cigarro. Dolores, minha mãe regra 3, me defendia dos capetas maiores. E Isabel, também da regra 3, olhava para mim com doçura e suspirava: “Coitadinho dele”!

No sentido publicitário do verbo, vou me vendendo depressa a ideias, pessoas, paisagens, climas, livros, objetos — o que existe no mercado. Quando morei em Ipanema fui ipanemense convicto; passei a ser lebloniano; fiz uma casa na serra, virei serrano.

Nunca tive centro de gravidade mental ou psíquico. Vou com todo mundo, todas as têmperas, todas as cores, todos os pratos do cardápio. Copiei um grifo de Stendhal: “Nunca tive consciência nem sentimento moral”. Fiz meu o verso de Murilo: “Sou firme que nem areia em noite de tempestade”.

Dou a alma pelo azul e traio o azul com o castanho.

Nasci para ser mundano, apesar de toda a minha desconfiança. Se soubesse dançar bem, não sairia do dancing. Amo acima de todas as coisas a sobriedade dos sentidos. Mas dou um boi para ficar ubriaco.

Não posso contemplar cartaz de propaganda turística sem me derramar pelas ravinas glaciais da Suíça, ou passar o verão no Marrocos, ou flanar pelos chiaroscuros de Praga, ou de estender-me como roupa branca nas aldeias brancas de Portugal. Mas sou capaz de trocar tudo por um sono entre o jantar e a velhice.

Não é preciso qualquer eloquência para persuadir-me. Nasci convencido. Amarro minhas mãos para não bater palmas aos discursos idiotas. Prendo meus tornozelos a pesadas grilhetas para não frequentar locais absolutamente intoleráveis.

Fecho os olhos para não sorrir a quem não vai comigo ou me detesta; mas às vezes já é tarde.

Também às vezes agrido porque também amo a agressão. Às vezes choro porque chorar é um prazer irreprimível e o mundo gosta de lágrimas. Li os clássicos com saudade dos românticos.

Perdoo a mim mesmo porque é doce perdoar. E também me destruo porque é duro destruir. Sou vidrado na minha dor.

Estraçalho uma bacalhoada com um vigor lusitano, mas sei dedilhar uma travessa de caracóis com um racionalismo gaulês. E talvez gostasse de passar a pão e água.

A chuva me pega com facilidade. E quando chega o sol, faço-me uma ode de carne e vou tomar sol. 

Se me dedico dois minutos a imaginar o amanho da terra, quero ir às honestas canseiras da lavoura, sou lavrador, bicho do chão, raiz. Mas já dei comigo consultando livros de mineralogia. E saio sempre voando quando passa o avião.

Pobre ser mercurial, escorro em tudo, rolo, desato-me e depois me recomponho, para escorrer de novo, rolar, desatar-me.

Às vezes dou comigo comprando uma casa no subúrbio, mas a poluição me desanima: compro um rancho nas lonjuras de Goiás. Ou abro uma salsicharia na avenida Ipiranga.

Vou e venho — é um direito, é uma obrigação que me impele, que me abusa, que perturba. Amo e desamo. Faço e desfaço.

Vi em Shakespeare um tonto quando li a antipatia de Tolstói. No dia seguinte achei o russo um cego.

Passo para o lado de quem me ataca. Desculpo o bem e o mal que me fazem.

Redigindo publicidade, acabei me apaixonando pela técnica de fabricação de certos produtos.

As palavras me pegam. As imagens me pegam. As inflexões me pegam. Viro amigo de infância de qualquer desconhecido.

O mal e o ruim frequentemente ganham de mim. Chego a morrer com simpatia.

No fim de tudo resta o silêncio, que é a minha liberdade. O meu vazio.

Serei o bobo do universo?

Nem isso: só um bobo. Mas gosto de ser bobo.

paulo-mendes-campos
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