O mundo não é uma coleção de objetos naturais, com suas formas respectivas, testemunhadas pela evidência ou pela ciência; o mundo são cores.

A vida não é uma série de funções da substância organizada, desde a mais humilde até a de maior requinte; a vida são cores.

Tudo é cor. O que existe, existe na cor e pela cor. A cor ama, brinca, exalta, repele, dá sentido e expressão ao sítio ou à aparência onde ela pousa.

Cores são seres individualizados e superpoderosos, que se servem de nosso veículo óptico para proclamar sua verdade. Nossas verdadinhas concretas empalidecem ao sol múltiplo que elas concentram.

Aprendo isso, tão tarde! com Ziraldo. Ou mais propriamente com Flicts, criação de Ziraldo, que se torna independente do criador, e vive e vibra por si.

Que é Flicts? Não digo, não quero dizer. Cada um que trave contato pessoal com Flicts, e sinta o que eu sinto ao conhecê-la: um deslumbramento, um pasmo radiante, a felicidade de renascer diante do espetáculo das coisas em estado puro.

Flicts faz a gente voltar ao ponto de partida, que, paradoxalmente, é ponto de chegada. No princípio era a cor, e no fim será a cor, alegria da percepção. Ou nem haverá fim, se concebermos a cor em si, flutuando no possível, desinteressada de pouso e de tempo.

Flicts já flutua no bojo desta ideia. Mais um passo, e não precisará de ponto de referência, ela que rodou por toda parte para afirmar-se, e acabou se encontrando... onde, não digo, não quero dizer. Você é que tem de chegar lá para vê-la.

O conto contado por Ziraldo só merece um adjetivo, infelizmente desmoralizado: maravilhoso. Não há outro, e sinto a pobreza do meu cartuchame verbal, para definir Flicts. Mas exatamente nisso está uma das maravilhas de Flicts: não carece de definição. É.

Mestre do traço desmistificador ou generoso (Supermãe, Jeremias), Ziraldo abriu mão de suas artimanhas todas para revelar Flicts com absoluta economia de meios ou, antes, sem meio algum. E dá-nos a festa da cor como realidade profunda, e não mera impressão da luz no olho. Sua revelação é fulgurante. Faz explodir a carga emocional e mental que as cores trazem consigo.

Disse que me faltam palavras: entretanto, o próprio Ziraldo, monstro-inventor de Caratinga, soube encontrá-las, compondo com elas não uma explicação de Flicts, mas um guia lacônico de viagem, para acompanharmos o giro ansioso de Flicts pelo universo. Este guia saiu um poema exato. Do resto, que é Flicts senão poesia formulada de outra maneira por Ziraldo? E o consórcio das duas poesias forma uma terceira, dom maior deste livro.

Flicts é a iluminação — afinal, brotou a palavra — mais fascinante de um achado: a cor, muito além de fenômeno visual, é estado de ser, e é a própria imagem. Desprende-se da faculdade de simbolizar, e revela-se aquilo em torno do qual os símbolos circulam, voejam, voltam, esvoaçam — fly, flit, fling — no desejo de encarnar-se. Mas para que símbolos, se captamos o coração da cor? Ziraldo realizou a façanha, em seu livro.

carlos-drummond-de-andrade
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