Fonte: Crônicas inéditas. Organização e apresentação de Eucanaã Ferraz e Eduardo Coelho. São Paulo, Companhia das Letras, 2022, pp. 47-49. Publicada, originalmente, na revista Sombra, de maio de 1944.
Existe uma Poços de Caldas que não é apenas a estação de águas dos grã-finos a quem o uísque falsificado dos cassinos vem deteriorando lentamente o fígado, nem das infatigáveis senhoras que ficam sentadas em frente à víspora para arriscar seu fácil “milho” e ostentar suas joias frequentemente de péssimo gosto. Existe uma Poços de Caldas que não é apenas a cidade dos milionários sírios e das duchas sulfurosas, uma que não vive apenas embalada pelo farfalhar constante das fichas de jogo que as mãos mágicas dos croupiers tediosos manipulam. Essa Caldas, fechada entre colinas, vive dos seus grandes céus matutinos, das suas incomparáveis tardes e das suas frias noites transparentes. É uma cidade pura e humana, que estira o cotidiano em afazeres domésticos e agrários, e cuja simplicidade se traduz na expressão daqueles que a fizeram assim, e por nada no mundo a abandonariam pela metrópole.
Essa boa gente, que faz de Caldas uma comunidade autêntica e profundamente arraigada às tradições minerais, aproveita das mesmas ruas, das mesmas lindas praças, dos mesmos agradáveis passeios de charrete, e até dos mesmos grill-rooms daquela outra gente, a que deliciosamente se caceteia nas confortáveis poltronas dos hotéis e deixa correr, entre bocejos elegantes, rios de dinheiro no pano verde.
Essa gente boa, vós as encontrareis perambulando à tarde na fonte dos Amores, o belo parque florestal, que nem a mão ingênua de um verdadeiro possesso de art nouveau conseguiu estragar, com aquele fabuloso par em mármore, Le Baiser, beijo cujo ardor a cascata maliciosa periodicamente refresca. Eles sabem, se distinguem dos seus esnobes congêneres, quando na direção mais esperta dos seus pangarés de tração, nesses formidáveis passeios de charrete para ir chupar uvas na chácara do Mansur [Frayha]. São feitos da mesma matéria que os outros, e vestem-se quase da mesma maneira, somente que em vez de usarem casimira e lãs da Inglaterra mandam-nas tecer às fiandeiras de Pocinhos do Rio Claro: e vos garanto que em nada perdem na troca. Essas artesãs habilíssimas produzem o melhor pano, e com um gosto rústico cujo requintado não há bem como celebrar. Ganhei de presente uma linda peça para um paletó de inverno, e só não pude exibi-la ainda, para inveja dos meus colegas do Itamaraty, porque há um ano que venho passando de largo do meu alfaiate.
Entre as melhores coisas de Caldas, tenho a lembrança dessa tradicional família Pio Dias, que durante a minha única estada na cidade tanto me cativou com a sua amizade e atenção. No amplo casarão de pé-direito alto, com seu avarandado no primeiro andar, de onde se descortina uma boa vista das cercanias, vivi algumas horas da mais amável recordação. Entre os numerosos filhos varões da casa, fiz boa liga com o jovem Moacir, que às qualidades de um namorador irresistível une as de um fotógrafo sobre quem quero chamar a vossa atenção. Com um sentido visual raro num rapaz de apenas vinte anos, uma compreensão dos efeitos da luz na fotografia de fazer inveja aos melhores profissionais, Xixo — pois assim o chamamos — vem, há algum tempo, descortinando um pouco dos maravilhosos céus de Poços, em imagens que estou certo qualquer grande cineasta não se pesaria em aproveitar.
Céus de Poços... impossível nos descrever o seu cristal, a limpidez do seu azul, a leveza do seu ar frio, a luminosidade de suas nuvens. Céus amanhecentes, crepusculares e noturnos de Poços de Caldas, que sensação perfeita de infância me deixastes, recortados entre preguiçosos outeiros, céus puros que vos carregais de tormentas passageiras para logo vos abrirdes com mais frescura, mais graça, mais anil! Contra a vossa luz vi se eternizarem símbolos efêmeros e se dissiparem em sombra realidades perpétuas da natureza. Inesquecíveis céus de Poços…
Só me caberia acrescentar, depois disso, que os céus de Poços deverão estar orgulhosos de Xixo. E mais que os céus de Poços, o chefe desse bom clã, Lindolfo Pio Dias, em companhia de quem percorri mais de uma vez as ruas da parte arriba da cidade, admirando os restos do velho casario que a cidade moderna poupou, a ouvir explicações sempre cheias de interesse desse caldense genuíno. Foi com ele que uma tarde saí em visita à sra. condessa do Pinhal, no desejo de conhecer uma venerável anciã cujo centenário viera de ser celebrado e cuja prole se estende, como uma árvore generosa, por sobre três estados do Brasil.
Minas, São Paulo e estado do Rio, através de quatro gerações — um verdadeiro arquipélago de famílias de renome. Na vila do Pinhal, um vetusto chalé recuado de um delicioso jardim meio em abandono, entramos, ele um senhor de mais de 60 anos, eu um homem de quase 30, com o respeito de duas vidas que, juntas, não alcançavam o prodigioso horizonte daquela vida de cem anos. Não posso me esquecer da emoção com que olhei aquele rosto perfeitamente belo na sua extrema decrepitude, aqueles olhos já semiapagados mas ainda suaves, aquele corpo vestido com punhos brancos de onde brotavam as mais delicadas mãos que já me foi dado ver.
Essas mãos tomaram as minhas, as afagaram numa carícia imemorial. Com uma curiosidade quase jovem, a condessa do Pinhal me perguntou sobre minha vida com uma voz que parecia vir de um sonho. Ao nos despedirmos, colheu ela com um gesto trêmulo uma rosa que tinha no regaço, e a estendeu para mim.
Saímos silenciosos, como que regressados de uma contemplação perfeita e sem medida no tempo. De uma das ruas altas da cidade, paramos para olhar o panorama que se nos oferecia. Lembro-me que os céus de Poços estavam contentes e azuis, contentes e azuis como a alma de uma criancinha.