Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 5/05/1971.
Peço licença para copiar quase integralmente as declarações do professor Silveira Bueno, publicadas em O Globo de segunda-feira. Catedrático de Filologia da Universidade de São Paulo, ele diz que todos nós sabemos, mas que até hoje ninguém, estranhamente, achou por bem proclamar. Começa denunciando que a famosa reforma ortográfica não passa de uma simples vassourada nas teias de aranha da ortografia, pois pretende apenas diminuir o número exagerado de acento nas palavras — exagero que chegou às raias das charadas, graças à imaginação desvairada do sr. Aurélio Buarque de Holanda, o culpado de todo esse aranzel gráfico em que vivem a debater-se os brasileiros. E prossegue:
— O fundamental continuará inexato e contraditório. Por que Bahia e baía? Não são dois vocábulos diversos, mas um apenas. Entrou aqui o baianismo da comissão reformadora, onde havia três baianos. Acharam que tirar o agá de Bahia (estado) era um desrespeito a terra mater. Entretanto, desrespeitaram Jehovah, Christo, Santa Catharina, Piahui. Em ciência não devem entrar sentimentos ridículos.
Acho que devemos conservar unicamente os acentos das palavras proparoxítonas ou esdrúxulas. É necessário, porém, conservar o acento agudo para indicar o timbre aberto da vogal: lágrima, tépido, trópico, túmido; e o circunflexo para o timbre fechado da vogal: Tâmisa, trêmulo, trôpego. O trema deveria ser conservado para fixar a real pronúncia de muitos vocábulos que andam à matroca: líquido, tranquilo, Anhanguera, Guaratinguetá, e não erradamente com a pronúncia líkido, trankilo, Anhanghera, Guaratinghetá. O obstáculo era a imprensa, eram as máquinas de escrever: em lugar de mandarem fazer matrizes adequadas e teclas necessárias, preferem gritar contra o famoso trema, a meu ver necessário.
O mal de raiz está em compor as comissões exclusivamente de literatos, de acadêmicos, em vez de filólogos, mas de filólogos realmente filólogos. Não há entre os acadêmicos nenhum que entenda de filologia. Desconhecem a etimologia das palavras, um dos elementos mais fixadores da verdadeira grafia. Mandam grafar joça, quando deve ser jossa; algibeira, algibe, algibebe, algeroz e tantas outras de origem árabe quando esta origem exige aljibeira, aljibe, aljeroz.
Sobre a unificação ortográfica entre Portugal e Brasil:
— Assim como difere a maneira de pronunciar de um português da maneira de um brasileiro, assim também haverá sempre diferença no modo de grafar essas duas pronunciações do mesmo idioma. Então? Então será indispensável, quando não influir a política nem o sentimentalismo, que haja uma ortografia portuguesa e uma ortografia brasileira.
Farei eu, agora, apenas uma observação. Se o professor Silveira Bueno, catedrático de Filologia na Universidade de São Paulo, se mostra assim entusiasticamente desfavorável à reforma ortográfica (tal como está sendo processada), deveremos aceitar a tirania dos acadêmicos e dos políticos? Por que não se abre um debate público sobre o assunto?
Tenho uma pequena explicação — um pouco leviana, é verdade, mas vai assim mesmo. Muitos escritores brasileiros, surpreendidos pela confusão ortográfica em pleno desenvolvimento mental, acabaram adquirindo uma preguiça invencível. Preferem escrever tal como lhes parece certo, e quando a obra está pronta procuram o dr. Aurélio, a fim de que este lhes proporcione um bom número de acentos e hífens sofisticados.
Só assim se pode compreender que pouquíssimos (menos de dez) escritores e jornalistas se tenham pronunciado contra a imposição ditatorial do circunflexo em nôvo, por causa de um verbo novar que poucos conhecem e só os pedantes usam. Essa imposição tem menos de dez anos, e hoje está sendo condenada pelas mesmas pessoas que a inventaram.