Ouça a crônica de Paulo Mendes Campos na voz da poeta e tradutora Bruna Beber.

Assim como há quem sofra de insônia, sofro eu de despertar. Meu sono é tão nebuloso, tão viscoso, tão atravessado de assombrações e armadilhas, que me custa o indizível ter de me arrastar desse brejo ancestral para as obrigações do mundo urbano. Existe um poema de Henri Michaux que conta angustiadamente o difícil renascimento do planeta gasoso (ou da imensamente gigantesca ameba cloroformizada) em que certas pessoas se transformam depois da aventura noturna.

Enquanto pude, filho ou chefe de família, proibi que me fosse feita qualquer pergunta durante a minha primeira hora de vida cada manhã. Você hoje vai cedo para a cidade? Uma questão à toa como esta, em vez de me puxar para a frente, me empurra de novo para trás, para o pântano primevo, onde se conhece apenas o desconhecimento. Você quer um ovo quente? E eis-me outra vez um cadáver que não morreu de todo, um morto ainda emaranhado no pesadelo de ter vivido.

Quando os pequenos foram crescendo (como no Plebiscito de Artur Azevedo, são dois, um menino e uma menina), minha proibição começou a ser desmoralizada. Abro os olhos omissos e, como um cão que estranha o dono, tenho vontade de latir para o meu mundo. Venho de charnecas nevoentas; venho de violentos desencontros e nada quero; sou só um pedaço de homem; não tenho força para galgar os degraus do dia que se oferece. Já inclinado a regressar para sempre ao meu povoado de fantasmas, de horrores e beatitudes selvagens, ouço uma voz a pronunciar palavras incompreensíveis e, decerto, sinistras. Faço um esforço sem direção. Uma faísca sonora disse papai, estilhaçando a treva que cobria a face do abismo. Papai era eu. Abro os olhos idiotas e vejo uma carinha que não me é de todo estranha. Depois de uma sofrida reflexão, admito que pode ser minha filha. Mas tenho eu uma filha? Desisto de saber. Fujo através de um túnel e reapareço do outro lado, onde a mesma carinha me espera com a sua condenação. Papai. Papai sou eu mesmo, digo para tranquilizar-me. Removo destroços, procuro espancar pelo menos o grosso do nevoeiro, agarro-me ao abajur, ao armário, à persiana, e o homem da caverna consegue afinal dizer uma palavra: Hã! A menina, esperançada, repete a sentença ininteligível:

— Como é que eu distribuo 2.400 litros d’água por três reservatórios, de modo que o primeiro tenha 54 litros mais que o segundo, e este 63 litros mais que o terceiro?

Diante desse enigma repelente, é muito melhor voltar à condição de ameba, mas já é tarde: estou grudado a uma zona intermediária, em uma desolada terra de ninguém, entre dois mundos absurdos. Abre-se um pouco mais a réstia de entendimento, mas o impasse continua. Com timidez e ressentido orgulho, confesso: Não sei. A carinha não se afasta do meu caminho e compõe outro enigma esmagador:

— Uma livraria manda pagar a uma casa editora de Paris uma fatura de 1.500 francos por intermédio do Banco de Londres.

Suspiro de desespero. A esfinge continua implacável:

— Eu quero saber qual a quantia necessária, em moeda brasileira, se 30 francos valem uma libra, e esta, 48 cruzeiros.

— Não sei, pergunte à sua mãe, que é inglesa.

Fecho os olhos. (Puxa, papai!) Abro os olhos. Reconheço com uma alegria de bicho que a menina impertinente sumiu. Posso regressar aos meus pampas impalpáveis, às minhas campinas eternas. Mas uma pata me agarra pelos cabelos. Papai. Abro os olhos e dou com um menino de cara redonda e resolvida.

— Pai, os músculos formam o que chamamos de carne? 

— É claro, respondo sem nenhuma convicção, só para ver se me livro daquela cara de maçã.

— Quais são os símbolos da pátria?

— Não me lembro de todos.

— Como eram constituídas as bandeiras?

— Como sempre: um pedaço de pano e um pedaço de pau.

— Puxa, papai, essa até eu sei: as bandeiras eram constituídas de homens, mulheres, moços, velhos, índios amansados, padres, animais domésticos e bestas de carga. 

— Se você sabe, por que está perguntando? 

— Queria ver se você era mesmo ignorante.

— Vê se não chateia, Daniel.

Recebo uma patada nas costas e reconheço que perdi o combate: vou nascer de novo. A luz me machuca. Usando todos os meus pseudópodes, rastejo até o chuveiro. A água faz bem aos animais. Do outro lado da porta, as perguntas também continuam a chover.

— Qual é o antônimo de fervor?

— O barulho do chuveiro não me deixa ouvir.

— Que consequências trágicas sofreu o Brasil, na Segunda Grande Guerra Mundial, por não possuir estradas? 

— Hein?

— Movimento de translação é assim ou assim?

— Não posso ver pela porta, não é, Gabriela?! 

— Como Pedro Álvares Cabral podia saber que tinha chegado na baía Cabrália?

— Não se faça de engraçadinho, menino.

— Como era mesmo o nome direito do Caramuru?

— João Ramalho, menina!

— Que João Ramalho, papai!

— Uai, não é não?

— João Ramalho é aquêle que ajudou Martim Afonso de Sousa na colonização da capitania de São Vicente. 

— Ah, é isso mesmo.

— Mas eu quero saber é o nome do Caramuru. 

— O do Caramuru eu não sei, não.

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