Fonte: Seleta de Dinah Silveira de Queiroz. Apresentação e notas de Bella Josef. Rio de Janeiro, José Olympio, INL, 1974, pp. 67-69.
Por curiosíssima coincidência, li no mesmo dia as declarações de Piolin, o palhaço bem-amado no Brasil, dizendo que o circo morria, entre nós, e assisti, na Crônica Italiana da televisão, a um instantâneo que me comoveu. O dono do “Florença” dava a última exibição de seu circo para algumas crianças. Crianças só, na imensa plateia vazia, sob uma temperatura gélida, os holofotes iluminando inúmeros rasgões da cobertura.
Ficamos sabendo que o “Florença”, como o nome indica, estava com seu toldo levantado às portas da cidade italiana, quando houve o dilúvio. Foi um prejuízo terrível. Tudo se decompôs e os pobres dos artistas não tiveram meios para transpor essa fase de desolação. Vieram, então, para Roma, trazendo bichos e petrechos, e aqui ficaram, batidos pelos ventos do inverno, naquele circo esfarrapado, de feras esquálidas, de gente mal vestida, que nem mesmo na noite de Natal conseguiu dinheiro suficiente para matar a fome dos animais. Ouvi a patética declaração da domadora:
— Faz cinco dias que as minhas feras não comem. — E a mocinha ganhou uma projeção quase mística, quando acrescentou: — Devo conversar com meus bichos, acalentar-lhes a fome. Eles compreendem um pouco. Estão esperando, mas hoje meu cavalo morreu!
Víamos aquele fim tristíssimo do circo. Para os livros, para as obras de arte, houve mananciais de riquezas do estrangeiro, que se abriram para salvar o patrimônio de Florença, mas o circo, esse não; ele pertencia ao marginalismo das artes. No dia seguinte, as esqueléticas feras seriam entregues ao Jardim Zoológico de Roma; a moça mágica, que sabia acalmar a fome das feras, explicando-lhes que o alimento não tardaria, iria obter empreguinho no comércio ou, talvez, se fizesse bambinaia, isto é, babá, e empregasse com os bichinhos humanos a doçura e a persuasão da sua fala. O palhaço, que era o dono do circo, cujas mãos sofridas se esfregavam uma na outra contando a odisseia de seu circo — esse quem o quereria?
— Quero levantar novamente o toldo do circo, se obtiver dinheiro, porque as crianças me fazem falta.
As crianças lhe eram fieis. Não estavam ali, enfrentando o frio que atravessava os rasgões da cobertura?
Essa última noite no Circo Florença fez doer o coração de muita gente. Estão chegando donativos, mas duvido que se possa garantir um futuro para ele. Aqui da Europa, tenho visto, através das minhas peregrinações por vários países, a agonia dos circos. Lembro-me de um, que descobri nos arredores de Helsinque — quase tão rasgado e mendicante quanto esse, cuja última função a TV romana mostrou. Parecia impossível que aquela gente erguesse a sua lona — virá daí a expressão até a última lona? — por aquelas alturas nórdicas, tão pouco garantidas contra o frio. Mas ele estava lá, o circo de Helsinque. Crianças-moleques nórdicos — acorriam, como acorrem aos circos-mendigos do Brasil os molequinhos do interior. Então, pensei, como penso agora diante das palavras do palhaço Piolin e da ruína do Circo Florença, se não haverá impiedoso desdém dos governos e até mesmo da Igreja — por que não? — para essa última forma de arte, que traduz a maravilha do homem antes do pecado original.
Do circo só sai bondade; pois até as feras não são capazes de ser dominadas, numa fome de cinco dias, pela palavra de sua domadora? E os palhaços? Esses são o riso de antigamente abrindo nos dias de hoje. Os circos são anteriores às histórias de violência que as crianças veem na TV, às bravatas dos mocinhos e pistoleiros, à complicada máquina de glamourização das meninas, que começam desde cedo, ao imitar garotas-propaganda e vedetes do vídeo. O circo é a última inocência do mundo. Será que ninguém vê? Será que ninguém sabe?