Fonte: coluna " Café da Manhã", A Manhã, de 17/06/1949.

Como prometi – direi hoje o que penso da crônica. Confesso que, perguntada por um leitor, pelo telefone, sobre, “o que é afinal, a crônica”, tive alguma dificuldade em responder, e preferi gastar um “café” com esta resposta, que talvez aproveite a outros – embora não pretenda passar por professora, e aqui esteja oferecendo apenas minha fraca experiência.

Se o leitor quiser consultar um dicionário talvez encontre isto: chronica: “história ou narração dos fatos, segundo a ordem dos tempos”. E logo, esta perturbação: chronica escandalosa, os boatos maledicentes a respeito de certas pessoas numa terra. Biografia escandalosa de uma pessoa: “Todos sabem a chronica. Por fim, você que deseja escrever uma crônica sem saber, bem ao certo, como ficar dentro dos limites do gênero – encontra apenas esta secura: “Narração dos principais acontecimentos. Chronica política. Chronica literária. F. lat. Chronica

Eis aí, meu amigo, como se fica zonzo com bordoada na cabeça. Feche o dicionário, e ouça esta definição que talvez pareça chocante:

A chronica é a fraqueza do jornal.

Com isso não estou desmerecendo o gênero. Mas todo o jornal que se preza deve ser preciso e austero. A crônica, necessariamente, carece fugir da fria exatidão e da austeridade, e ainda que muitas vezes alcance em cheio o seu objetivo sério, não deve vestir a roupagem sisuda. Disse que é uma “fraqueza”. Está visto. Um editorial, por exemplo, sai da boca do jornal. E ele próprio quem fala; que jamais nele se estampe a figura ou os tiques de quem o fez. A crônica, não. É o próprio autor – mais ou menos sem compromisso com toda aquela república de ideais e preconceitos que é um jornal. Todavia, o cronista deve ter a habilidade – aí talvez já seja o instinto – de carregar para a sua página aquele terreno comum em que nos encontramos com o próximo, o nosso inimigo. Falei em “fraqueza”, mas não falei em futilidade. Crônica fútil é coisa detestável. Digamos, porém, que o sentimentalismo é uma fraqueza. Se você souber dosá-lo poderá fazer uma ótima crônica. Muitas pessoas enveredam pelo terreno da reportagem, e pensam que foram esplêndidos cronistas. Um bom pelejador dessa forma literária também foge da precisão, e joga com a força da surpresa, ou com os benefícios de uma evocação oportuna, quando narra um fato. Fartamente se deve munir o cronista dos recursos da poesia, mas sempre com cuidado para não cair no meloso, ou no róseo.

Crônica se faz a propósito de tudo, até de assuntos respeitáveis, como os incêndios de uma cidade, que também dariam excelentes reportagens ou editoriais. Mas será preciso saber fugir várias vezes, com habilidade, ao tema, citar por exemplo as mudanças – cinco mudanças valem um incêndio ou falar sobre um baile dos “Heróis das chamas”, no meio da narração. Todavia, há assuntos que só dariam crônicas. São as mais legítimas “fraquezas”, e o melhor material para o cronista, embora nos dias que correm os preguiçosos contistas passem o “conto” da crônica pelo conto. Talvez seja por esse motivo que um meu ilustre e caro amigo despreze o conto, que assim fica uma espécie de gato por lebre.

Darei aqui a amostra de um desses típicos temas. O assunto foi colhido numa conversa. Certa senhora havia terminado o seu desquite, e então resolveu espairecer de angústias e tristezas. Foi para um hotel. À hora do jantar procurou uma mesinha mais discreta, lá no fundo do salão. O garçom acudiu, solícito, e perguntou:

–  Madame está só?

E quem contou esta história teve uma tremura na fala ao continuar:

– Estou sozinha, sim! Quando eu disse isso ao garçom, não sei por que me vi como personagem de um romance francês qualquer, que bem poderia acabar com minha resposta: Estou sozinha, sim! Mal disfarcei o desejo de chorar.

Essa narração, bem aproveitada, poderia dar um desses flamantes pedaços de vida que passam às vezes sob nossos olhos, num jornal, e que, no dia seguinte são esquecidos. Porque o cronista passa, ainda que esbanje mais talento, às vezes, que o historiador. Quem quer esposar a crônica deve saber amar o momento fugidio.

dinah-silveira-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.