Periódico
Manchete

Publicada, posteriormente, em Hora do recreio, Sabiá, 1967, pp. 120-122.

Duas horas da vagarosa tarde de dona Josefa, que se aplica ao ponto de cruz no canapé. É em Copacabana. Do tapete morno, dos reposteiros tristonhos, dos móveis de jacarandá, do espelho em ébano entalhado, do piano de mogno, das porcelanas, de tudo, exala (segundo a expressão da neta) um cheiro horrível de cemitério. A avó não se agasta; esse odor de cemitério é o único vivificante para ela; o que sugere a morte aos olhos da garota em flor, a ela recorda a vida. Se a criada ousasse abrir uma janela, se o vento da praia entrasse, dona Josefa decerto morreria sufocada.

Mas agora dona Josefa se levanta, verifica se o relógio bateu certo, sobe as escadas. Duas e meia. Daí a três quartos de hora, ei-la de novo na sala: vestido longo de seda preta, borzeguins de pelica, gorjeira de folhos engomados, chapéu de palha italiana, mitenes de renda nas mãos enrugadas. A neta repete mais uma vez: “Ih, vó, parece até que a senhora vai ao baile da Ilha Fiscal…”

É claro que é um absurdo, mas dona Josefa vai mesmo à rua, vai sair, enfrentar Copacabana lá fora! Digo ainda: há mais de 20 anos que sai a essa mesma hora, há mais de 20 anos que tem um pecado às quatro horas da tarde. Perdendo o marido e a mocidade a um só tempo, tendo casado os filhos todos, renunciou a tudo, fechou-se com seus fantasmas, cobriu-se de austeridade da cabeça aos pés, mas…

Mas tem um pecado. O chauffeur (pronunciado bem à francesa) abre a porta do carro e dona Josefa é conduzida ao longo da praia, alcança Botafogo, onde deixou um pouco de sua juventude, chega à cidade, que ela não vê, há o problema diabólico de encostar o automóvel, ela desce, vai pela rua dos Latoeiros (hoje Gonçalves Dias), chega a seu destino. Solene, seca, decidida.

Seus olhos se fixam na vitrina de doces da confeitaria. Meditação, dúvida. Depois, o indicador parte com uma voluntariedade que só possuem as mulheres que já foram muito bonitas e continuam muito ricas. “Este aqui”. O empregado estende-lhe o doce. Dona Josefa come devagar, com um prazer seco. “Agora aquele ali”. Tem que ser aquele ali, nenhum outro. E o dedo vai apontando, este, aquele, ali atrás; ela vai comendo devagar os seus docinhos, e a cidade estruge, e a mocidade desfila pelas ruas, a bossa nova jorra do alto-falante, derruba-se um morro, aterra-se uma praia, inaugura-se um arranha-céu. Dona Josefa não tem nada com isso. Bilac também não tem nada com isso. Mas o poeta está morto no seu túmulo. Dona Josefa está viva diante duma imensa prateleira de doces. Este. Aquele. Solene, seca, desdenhosa.

*

A outra senhora, sem maiores relações com a primeira, de meia-idade, bonitona, foi abandonada pelo marido. Triste, às vezes desesperada, esbaldando-se em lágrimas torrenciais, vive com intensidade a sua hora tango argentino. Por fim, coitada, gasta pelo desconsolo, entrou naquela faixa que os norte-americanos chamam de nervous breakdown. Deixou de sair, de se arrumar, de comprar roupas, e até mesmo de almoçar e jantar, ela que amava os vestidos bonitos, as festas, ela que se fizera famosa na sociedade carioca por seu amor teórico e prático à boa mesa.

Naturalmente, suas inúmeras amigas prestam-lhe constante e carinhosa assistência. Mas em vão. Essa Dido moderna faz questão de permanecer inconsolável na sua mágoa de amor. Sim, em geral passa as tardes na companhia de solícitas amigas, mas jogada a um divã, suspirando de cortar o coração, invectivando oportunamente (com o perdão da palavra) a vagabunda que lhe roubou o marido.

No momento, ela está prostrada, olhos vermelhos, cabelos desfeitos, sem qualquer pintura no rosto. Ao lado, a melhor amiga faz as unhas.

E eis senão quando Dido sai correndo, abre a porta, despreza o elevador, desce aos pulos a escada, gritando: “Samanguaiá! Samanguaiá!”

A amiga não pode ter a menor dúvida: deu-lhe uma coisa, pobrezinha! Aquela correria inesperada, aquela palavra sem sentido... E corre ao encalço da que enlouqueceu por amor, apavorada com a ideia duma tragédia maior, lá na rua.

Pois eu lhes conto que não encontrou o corpo de Dido ensanguentado no asfalto. A cena é outra: Dido mexia excitada dentro do balaio dum vendedor ambulante.

― Que é isto, Heloísa?

― Ah, minha querida, isto é samanguaiá e do bom. Um estouro quando bem feito! Há séculos que eu não comia samanguaiá!...

Só ela tinha ouvido o vendedor apregoando os samanguaiás, um molusco muito raro, que recomendo a todos que sofrem do mal de Heloísa (ou Dido). Pois dentro de pouco tempo, ela entrava em animada convalescença; embora outros sustentem que o desejo de comer samanguaiá já fosse o princípio indiscutível da cura.

paulo-mendes-campos
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