Fonte: Café da manhã, Olivé, [1969], pp. 64-65.

A noite de sábado ― oh, se eu fosse um diretor de filme! ― teve para mim ingredientes à Bergman. Gostaria de simplesmente pegar a máquina e ir fazendo o filme da noite carioca, tal qual se me apresentou. Primeiro, eu contaria aquela história, um pouco triste, um pouco gaiata, do rapaz ― eram dez horas, a avenida Copacabana explodia da gente acalorada, comprimida nas faixas de trânsito, nos veículos e formigando pelas calçadas ― e o moço, dentro de uma vitrina de boutique, limpava os pés de um manequim, num striptease feérico.

Sim, era uma mulher fingida, bem feitinha, com grandes pestanas postiças iguais às que as mulheres de verdade põem hoje em dia, peruca de cabelos naturais igualzinha à que as senhoras usam, variando de penteado. Mas estava como seu criador a fizera quando nasceu, de plástico, entre outras duas mil iguaizinhas no porte. Por que limpava o moço os pés do manequim? Por que usava tanta delicadeza? Quem olha pés de manequins nas vitrinas? Pois ele estava lá, entregue a seu cuidadoso trabalho, enquanto a nudez casta do modelo de amanhã da boutique esplendia sob as luzes de Copacabana.

Deixei o moço que enfeitava e banhava o manequim de vitrina, enquanto milhares de outros moços não tratavam tão gentilmente assim outras tantas milhares de moças, nessa guerra fingida e no desafio entre os sexos. Digo isto, porque, logo adiante, nesse meu caminhar por Copacabana apinhada, enveredava pela fila dos que iam assistir ao filme Persona, aqui batizado com o horrível título Quando duas mulheres pecam. Nesse momento, em que eu tomava lugar na fila, bem atrás de mim, um rapaz dizia a certa jovem:

― Para mim você não tem nem fisionomia, nem simpatia.

Era um discurso a quem interessar. A pequena não chorou, nem protestou, mas a humilhação devia ser grande porque, até hoje, num sábado como aquele, eu me lembro da delicadeza com que o moço lidava com os pés de um manequim de vitrina e da brutalidade com que outro, para quem quisesse ouvir, despachava uma jovem conhecida. 

“É só” ― como diria o Nelson Rodrigues.

dinah-silveira-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.