– Me diga uma coisa: por que a sua última crônica saiu tão mal escrita que nem parece ter sido você o autor?
A pergunta de Leila surgiu assim do nada, em meio à fumaça e à algazarra de um bar. Ela já estava com meia dúzia de caipirinhas na inteligência, mas bebe continuamente e nunca a vi agressiva. Além do mais, a crônica a que se referia era isso mesmo: péssima, irreconhecível – um texto de principiante sem vocação, nem talento, nem ao menos sinceridade. E o autor era eu mesmo. Concordei; e acrescentei:
– O pior, Leila querida, é que as próximas três ou quatro, que já mandei para o Caderno B, são também de baixa categoria. Se eu fosse você, nem me daria ao trabalho de ler…
– De forma alguma – volveu ela. – Leio sempre e não será agora, que você está numa fase decadente, que deixarei de acompanhar o processo. O que eu quero é saber qual o motivo disso.
Abstraindo a nossa amizade – e amizade amorosa – compreendi que quem me falava era a leitora habitual – e há tantas e tantos que há anos, precisamente 18 anos, me acompanham, se divertem comigo, sofrem comigo, se solidarizam comigo na indignação ante a injustiça, na ira ante a degradação física e moral a que o homem reduz o seu irmão inocente, em todos os cantos deste mundo... As cartas não mentem: publiquei ao pé da coluna, durante certo tempo, o meu novo endereço: Caixa Postal 33168, Rio de Janeiro. Ora, imediatamente, a correspondência que até então era enviada ao JB, onde tenho meu escaninho, foi transferida para essa minha caixa postal no Leblon. Poucos leitores recentes: a maioria, missivistas que me acompanharam nesses anos todos, embora alguns deles se manifestassem por primeira vez através de cartas, livros, poemas inéditos, confissões íntimas. Me compenetrei de que Leila falava por eles e, portanto, o público devia estar exigindo de mim uma explicação.
Pois bem, vamos a mim, ao estado atual da minha alma... Antes disso, devo esclarecer que houve uma interferência objetiva, um contratempo mecânico, responsável pela brusca ruptura entre meus nervos e minha parola. Comprei a prestações uma máquina elétrica. Paguei a primeira prestação. Isto aconteceu há semanas e até agora a minha máquina não veio. Em seu lugar, estou trabalhando numa Olivetti Tekne-3, emprestada pela empresa, sob a alegação de que devo me acostumar a trabalhar nessas novas condições antes de receber da fábrica a maquininha zero quilômetro que me pertence, cujo formato e tipos de letras escolhi no catálogo. Ora, até agora não me deram o manual destinado a ensinar o usuário a trabalhar nas tais novas condições, inteiramente estranhas à antiga maneira. Resultado: uso a máquina elétrica com mentalidade adquirida antes da introdução da máquina elétrica no mercado. Em resumo, estou analfabeto.
Pior: desaprendi a maneira de datilografar nas máquinas não elétricas, das quais tenho duas – uma grandona, para datilógrafos profissionais, e outra portátil, que vive comigo desde 1965, quando a comprei em Paris, nas Galerias Lafayette. Foi nessa Olivetti Lettera 32, fabricada na Itália, que escrevi não apenas alguns dos meus textos mais bem-sucedidos, como as três ou quatro crônicas que Leila agora considera péssimas, com toda razão.
Que fazer? Telefonar à Sunab e denunciar a negligência da firma, exigindo que me mande sem tardança a minha máquina, juntamente com as indispensáveis instruções acerca do seu manejo? Desfazer a compra, desistindo de trabalhar na máquina elétrica, e voltando à simplicidade do teclado comum? Ou confessar publicamente que houve, além disso, uma transformação radical na minha alma ⏤ antes e depois da via dolorosa parisiense, causada pela famosa pancreatite – e que, nestas condições, não sou mais o mesmo homem de antes? Sim; devo fazer isso; não sou mais o homem que era, antes de sofrer a dor imortal no corpo; mas ignoro que espécie de pessoa sou agora. Navego sem identidade numa turbulência brumosa. Como o executivo no momento da sua estafa suicida, urge que me recicle, discernindo em meu ser um objeto que se desgasta na luta pela vida, e me dando assim a oportunidade de me contemplar, sopesar, examinar objetivamente. Já que não sou mais quem eu era e, na transição, não me sinto ninguém, devo ser alguém. A este, para facilitar, chamaremos Carlinhos Oliveira – o meu duplo, do qual lanço mão justamente quando meu espírito anda confuso.
Quais serão, pois, as razões subjetivas e objetivas que fizeram de Carlinhos Oliveira, esse ser noturno, escritor em crise, canhoto das duas mãos, no momento atravessando uma crise abstrata? Para responder a tais e tantas perguntas, o método correto é a narrativa. Veremos se esta aventura é possível. Mas… Tocam a campainha. Apresenta-se uma nova cozinheira. Devo interromper tudo para lhe ensinar quem sou, como vivo, a que horas almoço, quais os pratos de minha preferência, onde fica o supermercado (ela mora longe, quase na fronteira do Espírito Santo) e, enfim, devo representar o Carlinhos Oliveira como solteirão impaciente, que detesta viver sem mulher (porém as mulheres andam neuróticas, Senhor!) e se vê forçado a abandonar a ferramenta de trabalho na qual se debruça penosamente, para enfrentar as dificuldades domésticas, indicar à nova cozinheira o horário em que os pães saem do forno na padaria aqui perto, quantas colheres de café ela deve lançar no coador... Eis aí: um embaraço objetivo, interrompendo o fio do discurso e colocando em risco a qualidade média da crônica de hoje, esta que vocês estão lendo. Creio que já começamos a anunciada narrativa...