Fonte: O homem rouco: crônicas, José Olympio, 1949, pp; 168-172.
De repente me ocorre que estou cansado de morar nesta casa. Durante demasiados anos vivi de casa em casa, de quarto em quarto, de cidade em cidade, para que não sinta esse desgosto sutil de estar parado na mesma esquina, embora quieta, embora boa.
Minha vida aportou aqui sem dizer que ia ficar, tal como a canoa do pescador que para junto a uma pedra, em saber se é por meia hora ou pelo dia inteiro. Aos poucos levantei, sem o notar, a minuciosa corografia humana deste trecho de mundo. As caras permanentes da rua foram se fixando no fundo de meus olhos; um dia encontrei, no centro da cidade, um empregado do armazém da esquina e achei tão absurdo vê-lo ali como se, entrando em um Ministério eu encontrasse, no gabinete, o gato ruivo de minha vizinha.
Custei a reconhecer a cara familiaríssima do mulato; seria talvez um garçom de Belo Horizonte, ou o contínuo de um jornal de Porto Alegre, talvez algum soldado da FEB... Não consegui descobrir.
No dia seguinte ele passou sob a minha janela, como passa várias vezes por dia, em sua bicicleta, e tive um sobressalto.
E' que essas caras existem em função da rua. Também já me aconteceu cumprimentar, distraído, na saída de um cinema, uma moça loura de pele muito queimada; cumprimentei-a sem saber exatamente quem era, mas sentindo que era uma pessoa muito conhecida, talvez irmã de algum amigo. Ela respondeu de um modo meio reticente, meio surpreso. Fiquei embaraçado. Depois descobri que não tenho relações com essa moça; apenas a conheço de vista, da minha rua, onde nunca me ocorreria cumprimentá-la.
O mecanismo da cordialidade humana não é muito simples; sempre corro o perigo de cumprimentar efusivamente, quando encontro, de súbito, um desafeto qualquer: antes de me dar conta de quem se trata, eu o saúdo porque é uma cara conhecida...
Mas a rua subitamente me cansa. Parece que sou escravo de seus hábitos; sei precisa-mente a hora em que a "vaca leiteira" aparece e as empregadas das casas saem apressadas, de latas e garrafas na mão, para a pequena fila de leite; conheço todos os pregões, e os carteiros, os meninos que esperam o ônibus do colégio, o apartamento que fica aceso ao longo das madrugadas para o "pif-paf" e o "buraco"; conheço até alguns automóveis e os fregueses do buteco perto do mar, o idiota com quem os moleques mexem, a mocinha tão bonita que de repente ficou magra, triste, esquisita...
Sem indagar, sem na realidade saber o nome de ninguém, vou sem querer considerando tudo isso como parte de minha própria vida; a rua se infiltrou em mim como se eu vivesse em uma aldeia minúscula. Há dois ou três sujeitos antipáticos e mulheres desagradáveis que nunca me fizeram mal algum, mas cuja existência me dá um desgosto secreto; experimento, sem querer, um aborrecimento quando os vejo, e gostaria de não vê-los mais; estou cansado deles como se fossem companheiros de viagem em uma longa e monótona travessia. Seria doce mudar, de casa ou de país. Sei, por experiência, que tudo isso que parece tão estabelecido em minha vida se diluirá com facilidade, e até o número da casa e do telefone serão esquecidos, e toda essa gente e todas essas coisas se apagarão em lembranças remotas. E como sempre, voltando um dia por acaso, a esta esquina, como já voltei a tantos lugares em que morei, é possível que eu tenha alguma saudade, mas bem maior será o secreto prazer de pensar que me livrei de tudo, das ternuras e aborrecimentos desta rua, que tudo ficou para trás como uma estação sem interesse, apenas mais uma estação, nesta viagem em demanda de coisa alguma.
Alegrei-me quando a agência funerária a algumas quadras daqui fechou a porta. Era triste supor que se eu morresse aqui meu enterro seria encomendado àquele homem gordo e tedioso, que escreveria o meu nome em um papel e faria contas com um lápis na mão. Pois até nisso a pequena rua fechava o seu círculo de rotina e burocracia em volta de mim; até nisso visava me acostumar à morna tirania de seus hábitos.
No dia em que partir, eu me sentirei mais livre do que todos, e gozarei de um infantil sentimento de superioridade, como dizendo: "vocês pensavam que eu fosse um morador desta rua, como vocês são; não é verdade; eu estava apenas em trânsito, apenas disfarçado em morador, e tenho na minha frente um horizonte trêmulo de surpresas... Adeus, volto para meus caminhos".
E irei morar em outra cidade qualquer, em outra rua qualquer, como esta...