Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 15/04/1974.
Em abril de 1964 eu era um garoto bastante perturbado. Tinha uma amante bonita e rica; vivia nas rodas grã-finas. Estava chegando de Paris, onde um intelectual de minha geração declarou: “Vai haver uma revolução socialista no Brasil.” Ponderei que latifundiário não faz reforma agrária. E também que os militares não iriam deixar o barco correr na forma que estava indo. Isso ocorreu num barzinho que ficava perto da avenue Montaigne. Foi naquele instante que comecei a avaliar a tremenda estupidez que faz de um homem um comunista. Eles, os comunistas, esperam que a realidade se ajuste a uma teoria. E não importa que a teoria vá pelos ares, pois para ser um comunista você deve fingir que está tudo muito legal. É assim que eles praticam a dialética: “Está tudo conforme a nossa ignorância nos ensinou.” Apareceu então o Marechal Castelo Branco e brandiu a bandeira da rebelião. Foi tudo pelos ares, de acordo com a tendência dos fatos e contrariamente a todas as contorções da dialética.
Desde então sofri muito. Não por mim, já que sou um pequeno príncipe no meio dessa confusão. Mas por todas aquelas pessoas que eu estimava e que foram cassadas, encanadas, banidas. Experimentei a amarga solidão global: aquela, sabem, que você não pode ir a lugar nenhum sem encontrar alguém que, ou é da polícia, ou é contra o regime. Você nunca está em boa consciência. Fiquei com mania de perseguição; a qualquer lugar que eu ia, tinha alguém me olhando. Uns achavam que eu era comunista e outros que eu trabalhava na polícia secreta. Em parte alguma estavam satisfeitos comigo. Eu riria assim, esdrúxulo na minha terra. Foram dez anos de amargura e medo, mas um medo absurdo de mim mesmo. Porque de vez em quando eu me perguntava: “Afinal de contas, o que é que eu sou? Comunista ou dops?” Eu era um homem sem partido (e assim continuo), mas não ter partido começara a ser uma espécie de ideologia. E a isso que chamo terror.
Aceitei, então, minha historicidade judaica. “Não sou coisa nenhuma: simplesmente um judeu que anda, anda, e ninguém aceita completamente. E assim vou continuar vivendo, pois não há outra oportunidade”. Disse e repito que eu era um garoto bastante perturbado.
Agora estamos comemorando dez anos de reformulação nacional. Somos um país desperto e vigoroso. Deu certo, na prática, a teoria errada. Os nossos irmãos separados mandam mensagens cifradas de arrependimento. O mundo inteiro se modificou. Quem não se lembra dos nove chineses que aqui estavam hora do bota-pra-quebrar? Ficaram presos exatamente como um jornalista inglês apanhado em Pequim no momento da destruição do mito estalinista. E hoje nós estamos namorando os chineses, baseados na teoria de que se trata de “um vasto mercado”. Mudou o mundo ou mudamos nós? Ou mudamos todos, mundo e pessoas, ajustados finalmente na perspectiva das trocas comerciais?
Todas essas interrogações e afirmativas estão na mente dos brasileiros que passaram dez anos no laboratório do nosso conhecido “milagre”. Atualmente, a força e a brandura se confrontam. A força não pode perder, por ser forte; e a brandura não pode ser vencida, por ser a única forma efetiva de enfrentar a força. A brandura é branda, ela se dobra, mas não se submete.
Assim continua indo aquele garoto que chegou de Paris bastante perturbado, em abril de 1964.