Fonte: Jornal do Brasil, de 14/06/1978.

Onde quer que se produza um acontecimento merecedor da atenção da cidade, lá encontraremos o popular, solitário ou em grupo. Eis tudo o que os repórteres nos dizem dele: “Um popular que passava pelo local…” É a testemunha privilegiada de todos os fatos dramáticos ocorridos nas ruas, e que no dia seguinte sairão nos jornais. Se conserva o anonimato, é pela simples razão de que ninguém lhe perguntou o nome; mas sem ele, sem a sua onipresença casual, muitas ocorrências de desenvolvimento lógico estariam catalogadas entre os mistérios intrincados.

Devemos defini-lo como pessoa que, dirigindo-se a um ponto qualquer na cidade, a ele não chegará – ou chegará atrasado. Porque entre esse anônimo e seu destino subitamente se coloca o incidente urbano que não lhe diz respeito, mas que exige imperiosamente a sua atenção.

Quando funciona em grupo, o popular observa ações simultâneas ou de origem e significados enigmáticos. Todos eles iam indo, não se conhecem, e de repente... Fogo! Em sua condição de populares, reúnem-se então, irmanados pela curiosidade. Quando os repórteres chegam, fazem relatos divergentes, mas não contraditórios. Uns viram o fogo começar numa janela do segundo andar; outros afiançam que alguma coisa explodiu no quinto andar, de onde na verdade teriam surgido as primeiras labaredas; há mesmo quem afirme ter visto alguém sair correndo do prédio em chamas, razão por que os jornais especulam se o sinistro não terá sido criminoso.

O mesmo se dá quanto a assaltos a bancos e supermercados. Há quem tenha visto quatro assaltantes e não três, conforme revelou o gerente. Também não chegam a acordo quanto ao número de carros usados na ação, esqueceram a marca de fábrica de tais veículos e ainda mais lamentável – em sua perplexidade nenhum deles anotou o número da placa. Em circunstâncias assim, os populares se revelam de certa forma inúteis, por isso, mal chega a polícia, são rudemente empurrados para longe, já que permanecendo onde estavam iriam tumultuar o andamento dos trabalhos.

Quando se trata de disco voador, os populares apresentam relatos interessantes, mas sem um mínimo rigor científico. Uns avistam um disco azulado que paira a cerca de 100 metros do solo; outros dizem que era prateado, quando não, feito de material fantástico, inexistente na Terra. Por unanimidade, no entanto, decidem que avião não era, por muito veloz; balão também não fica evoluindo assim sem mais nem menos em cima da multidão hipnotizada; além disso, tal como surgira, desapareceu, como por encanto, sem deixar vestígio.

Mas, quando trabalha sozinho, o popular tem sua utilidade reconhecida por todos os que vivem nesta cidade caótica. É ele quem telefona ao pronto-socorro, pedindo ambulância. Ele também anota a placa do carro atropelador e calcula a velocidade aproximada que o veículo imprimia. Antecipando-se ao atestado de óbito, percebe por pura intuição a rigidez cadavérica da vítima; dispensando por conta própria a ambulância, liga para o Instituto Médico-Legal e encomenda o rabecão.

Em seguida, já exercendo funções suplementares, que lhe darão o direito de ser chamado “alma caridosa” nos jornais de amanhã, surge com um lençol apanhado ninguém sabe onde, e com ele cobre o infortunado pedestre. Finalmente, em outro passe de mágica delimita o espaço da morte com quatro velas piedosamente acesas, cujas chamas não há vento nem chuva que consiga apagar.

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