Caderno B, Jornal do Brasil, de 13/03/1972.

Sopra no Leblon um vento morno e alegre, as amendoeiras refolharam viçosas e rodopiam numa claridade ainda úmida de aguaceiro. Os namorados vão de mãos dadas: beduínos são eles neste oásis, trazendo ocultos os rostos sob os véus de cabelos em alvoroço.

“Meus policiais”, disse o homem mau de Belfort Roxo, “têm ordem de fuzilar qualquer bandido que fizer o menor gesto suspeito com as mãos quando for preso. Aqui, quem não se entregar bonitinho leva chumbo”. Enquanto isso, umas nuvens se esgarçam branquinhas contra o teto azul do Leblon.

Operários com capacetes amarelos erguem na direção deste céu uma nova Torre de Babel. Ali, onde houve outrora o Luna Bar, que servia chope gelado e batatas fritas, ergue-se agora o esqueleto da futura Babilônia. Os operários atarefados nos andaimes, visíveis a olho nu desde o princípio da Bartolomeu Mitre, lá para os lados do Jóquei, vestem calças de mescla, exibem musculosos torsos nus e trazem à cabeça esses capacetes amarelos que lhes conferem uma elegância de engenheiros.Trabalham com febril inocência, ignorando que suas velhas botinas estão pisando uma recordação feliz. Pois eu vos digo, operários, que ali no Luna Bar, outrora, Dorival Caymmi tirou no violão esta cantiga que ainda hoje vos transfigura em brejeiros amantes:

Marina, morena Marina, vo-
                       [cê se pintou.
Marina, você faça tudo mas 
                      [faça um favor
Não pinte esse rosto que eu
           [gosto e que é só meu 
Marina, você já é bonita com
              [o que Deus lhe deu…

“Arreda, arreda que lá vai bala”, gritou o homem mau de Belfort Roxo, e logo caíram baleados o estudante e o feirante. Mas aqui no Leblon, na Praça Antero de Quental, os abricós pendem dos galhos, amarelos, oferecendo um sabor de saudade aos transeuntes indiferentes.

“Enquanto o Brasil cresce e se projeta internacionalmente, não se pode ficar tratando bandidos com carinho”, falou o homem mau, e logo o vento morno dispersou em dossel a folhagem dos flamboyants aqui na praça Antero de Quental.

Sentada ao pé duma árvore, a professora primária espera o ônibus. Com os livros debaixo do braço, rapazolas seguem orgulhosos para a escola, bronzeados, com cabelos compridos e calças boca de sino. Vão orgulhosos por pertencerem a um colégio cujos diretores não confundem moda jovem com delinquência juvenil. “Aqui não estamos interessados em poupar a vida de marginais, e sim dos que trabalham”, disse lá em Belfort Roxo o defensor da ordem pública. “Quem não se entregar direitinho leva chumbo”.

Na Torre de Babel em edificação toca a sineta, anunciando a hora do almoço, e os operários vão ao encontro do feijão com arroz, como se fossem príncipes. Lá em Belfort Roxo um estudante nunca mais ouvirá as músicas de Chico Buarque, e desabou no chão um jovem feirante, mas seu cadáver não atrapalhou o tráfego, não atrapalhou o sábado, não atrapalhou coisa nenhuma.

Três velhos estão sentados ao sol, lado a lado, no banco que fica perto da carrocinha de sorvete. São três homens velhos, de cabelos brancos, e conversam animadamente, ao passo que a menina pretinha da escola primária, vestida de azul e branco, voa para lá e para cá, sentada num mini trapézio. Se eles soubessem, os três homens velhos, que atrás deles há abricós maduros, dispostos a trocar um simples gesto de mão pelo gosto perdido duma infância...

jose-carlos-oliveira