Fonte: A intensa palavra: crônicas inéditas do Correio da Manhã, 1954-1969. Rio de Janeiro, Record, 2024, pp. 231-232.

Publicada, originalmente, no Correio da Manhã, de 25/10/1963.

Era tão simpático aquele casal na Pedra de Guaratiba, mas tão simpático, que despertou suspeitas. Daí um delegado que não dorme no ponto prendeu-o por excesso de simpatia. E viu-se que o homem era ladrão internacional de grande classe; a mulher, exclusivamente esposa dedicada, como ele fez questão de declarar:

– Ela me acompanha pelo mundo afora, porém não participa de meus trabalhos.

Os trabalhos de Leopold são especializados. Ele opera no ramo de bancos e isso lhe valeu dez anos de vilegiatura na penitenciária de Quebec. Não foram só de vilegiatura, pois no interregno se aprimorou no ofício, graças ao companheiro de cela, que lhe ensinou o fino em técnica de arrombamento de caixas-fortes.

– O senhor tem uma aí para eu fazer demonstração? – perguntou à autoridade.

Como a polícia não dispusesse de tal equipamento, Leopold limitou-se a abrir em 20 minutos um cofre sem segurança e em dez segundos uma fechadura Yale. Perfeito. Alarmou o delegado com esta informação: nossos bancos em geral não têm alarme.

Conversa vai, conversa vem, Leopold e Lise contaram o romance de suas vidas. 12 países visitados oferecem bastante matéria. Em Ottawa há um banco que ele não assaltou, pelo contrário, tem ficha limpíssima nele. É o Banco de Sangue, que lhe outorgou distintivo de honra, como doador. Ficou implícito que o Banco da Providência, aqui, jamais correria qualquer risco. Leopold esclarece:

– Eu podia estar podre de rico, sabe? O coração é que não deixa. Pois não é que, tendo amordaçado o motorista e os guardas do carro-pagador, no Canadá, desceu na primeira estação para telefonar à polícia, pedindo que fosse salvá-los de asfixia? Aos pobres nunca roubou; parece óbvio e não é: há pobres que são ricos disfarçados, ou meio-ricos. Leopold prefere ajudá-los fartamente. E também abomina a violência, não é de fazer mal a ninguém, mesmo a um banqueiro.

Com a simpatia de sempre, conta o que fez e o que esperava fazer. Tinha três bancos cariocas na alça de mira e pretendia visitá-los na noite de 31 de dezembro. Fala com a espontaneidade de quem anuncia onde vai fazer réveillon, e as esticadas possíveis. É um homem sem mistérios, dispensando investigações, inquéritos, comissões dispendiosas e complicadas para apuração de crimes, pois até os futuros são relatados corretamente. Tudo isso entre festinhas a Lise, que de sua parte não lhe regateia quindins. O repórter que os viu sob os cuidados da Interpol, e de cujas informações me sirvo, conclui que se trata de um casal feliz.

Só que não lhes apetece voltar ao Canadá. Há tantas sentenças, tantos anos de prisão a enfrentar por lá! Preferem ficar por aqui mesmo (a paisagem, o estilo camarada da gente, não sei que visgo da terra) e assim esperam a compreensão das autoridades. São tão simpáticos, tão leais no confessar e no antecipar, que se fica desarmado, e o jeito será, talvez, soltá-los antes do Natal, ou pelo menos antes da noite de 31 de dezembro, para a qual já têm programa.

carlos-drummond-de-andrade
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.