O Amigo chega de longe – de há 48 anos. Está novo em folha, em sua magreza de folha. Tem o rosto marcado pelo tempo? É como se não tivesse. Os cabelos são pretos, a voz mansa e baixa, como antigamente, como sempre. Sobretudo, o modo de ser e o próprio ser não mudaram. É minha mudança que eu toco, diante de sua permanência. Então me divirto chamando-o de velho, por outras palavras. Invento, a meu favor, uma absurda diferença de idades. Ele sorri e desmente, sereno. Tem de seu lado a memória – essa memória de espelho, a cuja superfície as coisas vêm boiar com o relevo e a cor naturais. E vêm as coisas. O jogo era simples preliminar à entrada em matéria.
Entramos nela com apetite regulado, sabendo que essa fome não passa nunca, e por isso mesmo não precisamos dar-lhe toda a corda. Para instruir-me do nosso passado comum, principalmente do meu passado, vou puxando reminiscências por um fio fraco. E isso? E aquilo? E aquele cara – como é mesmo que se chamava aquele cara? Que certa noite, no bar... A resposta vem precisa, sem vaidade de memorialista, e me devolve à situação antiga. Não é diálogo de mortos, de uma a outra cova. E ida ao quarto de guardados, que não se abre todos os dias.
Os guardados estão em ordem, graças a ele, que não tem fama de organizado, enquanto eu, o arquivista profissional, sinto que por mim a arrumação jamais se faria. Sem tristeza os tiramos da arca, miramo-los, notamos este ou aquele pormenor que ficou precioso considerado de perto e de depois, voltamos a depositá-los onde dormiam. Sem tristeza. Até com a miúda, reflexiva alegria dos proprietários de velhas lembranças.
Assim conversamos na sala tranquila. É noite, em algum lugar desfilam escolas de samba. Mas o Amigo, de passagem pela cidade, não quis ir ver o desfile, desdenhou programas. Escolheu a noite para me, nos fazer companhia. Pois temos o direito de usar este pronome no singular: nós. Mas declará-lo seria quebrar o mistério dessa unidade. Sou eu que me visito, se ele me procura, discreto, entre longos intervalos que o correio não costuma preencher. Guarda-se para os encontros pessoais, quando o gesto, o olhar, a voz, mais do que os assuntos, fazem o diálogo.
Essa constância a meu dispor, essa fixidez de raízes fundas, entretanto, não excluem um feixe de acontecimentos individuais, de que não participei, melhor diria: que me foram poupados. Ele sofreu sozinho, não o assisti. E não me traz a presença de seu sofrimento, senão a notícia de o haver dominado em perseverante combate. Recolheu de tudo um agradecimento à vida, a surpresa de um milagre. A mim só me dá o melhor, como se o melhor fosse o normal, à margem de todo esforço.
Chovendo. As vidraças molhadas dão mais aconchego à sala, protegida do rumor e do vento; chove apenas para os outros, os que não receberam o Amigo, recebendo-se a si mesmos, os que vão procurar o espetáculo, a satisfação vinda de fora. Uma criança aproxima-se, examinando o visitante. As crianças estão sempre examinando os mais velhos, avaliando-lhes a humanidade. Este saberá comunicar-se, ou é apenas um adulto a mais, sem sabor de gente? O Amigo saca do bolso a pequena palha de milho, o canivetinho, o naco de fumo rescendente. A preparação de um cigarro: mágica pura, aos olhos de menino de cidade grande. Requinte final, o pequenino laço de palha no meio do cilindro, para que ele não se desmanche se o fumante o guarda para mais tarde. Pergunta ao garoto: “Você tem fósforo?” O menino, orgulhoso de fazer fogo, acende-lhe o cigarro de palha. Ficam amigos, à luz do pequenino círculo esbraseado. Uma luz que vem de há 48 anos.
Temas: Amizade; memória; infância.