3 mar 1968

Colarinho, por favor, o colarinho

Periódico
Correio da Manhã

Publicada em A intensa palavra: crônicas inéditas do Correio da Manhã, 1954-1969. Rio de Janeiro, Record, 2024, pp. 329-330.

 

Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

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Hoje amanheci com saudade pessoal do colarinho duro de ponta virada. Por que não restauram o colarinho duro de ponta virada?

Se tudo mais de 1900 está voltando nas asas da moda, se a costeleta, o bigode, a barba se instalam hoje triunfalmente na cara dos jovens e dos maduros, como se instalavam no tempo da Primeira República, por que não tirarmos também do baú o nosso digno, o nosso respeitável colarinho duro de ponta virada?

Vejo por aí o blusão de Mao Tsé-tung bancando o fino, adotado por honestos burgueses que jamais se alistariam na Guarda Vermelha. Pois não é ele, mais do que chinês, mineiro: o velho dólmã, aquele dólmã de brim cáqui, usado no trivial da semana para economizar gravata, ao tempo (feliz) do conselheiro Rodrigues Alves no governo? E se o dólmã impera, que motivo há para desprezarmos seu contemporâneo, o colarinho de ponta virada, de praxe nas grandes ocasiões e até nas médias?

Eu quero, eu exijo o colarinho duro de ponta virada, senhores desenhistas e fabricantes de artigos de indumentária masculina. Recuso-me a admitir que o marechal Costa e Silva receba o corpo diplomático sem ter o pescoço emoldurado pelo colarinho duro de ponta virada; e também não compreendo o meu amigo José Bonifácio assumindo a presidência da Câmara em Brasília de colarinho mole, pregado à camisa. Não. O colarinho há de ser duro, de ponta virada e, necessariamente, atarraxado à camisa por dois botões de ouro Krementz, façam-me o favor. Sei que custa um pouco atarraxar o colarinho duro de ponta virada, como, aliás, também o colarinho duro, dobrado, e mais ainda fazer passar a gravata pelo estreitíssimo canal deste último. Isso não impede que os usemos a ambos, principalmente o de ponta virada, tão altaneiro, majestático, elegantérrimo. Gerações e gerações endureceram o pescoço com essa prenda. Voltam as demais prendas do homem e da mulher civilizados. Elas calçam sapatinhos de boneca e botam vírgulas de cabelo na testa, como faziam na era de D. João Charuto, em que fui jovem. Eles repetem a cara de seus avós. Por que não ressuscitam o colarinho duro, de ponta virada?

Pleiteio ainda o restabelecimento da sobrecasaca e da bengala, peças indispensáveis ao perfeito cidadão urbano. Aquela, também chamada robissão e sutambaque segundo os dicionários (nunca em minha vida ouvi tais termos), era obrigatória em cerimônias públicas, inclusive a missa de domingo. A bengala compõe extraordinariamente a figura masculina. Não preciso dizer para que serve. Serve para tudo, além de ornamento. Um cavalheiro de bengala não terá problemas com o motorista do táxi e o fiscal do imposto de renda. Se o encontro é com outro cavalheiro de bengala, as forças equilibram-se, e entra em jogo a maior ou menor arte em floreá-la. A bengala, que volte imediatamente a decorativa, eficiente bengala!

Mas antes de outra qualquer rentrée, estou aqui postulando o ressurgimento engomado do colarinho duro, o de ponta virada, o bom, com que íamos ao baile no clube, à formatura na faculdade, à audiência com o governador, ao cinema com a namorada, ao embarque do amigo na estação da Central.

Está faltando, está faltando o colarinho duro de ponta virada. Que agora podia vir com uma ponta verde e outra vermelha, bem psicodélicas, ambas em forma de lira, bem art-nouveau.

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As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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