– Olha a revista. Que beleza de mulher, hem? 

– É mesmo. Que beleza de capa de revista! 

– A capa é mais bonita, você acha?

– Não, ela é que nasceu para ser bonita de capa. Que seria das revistas se não houvesse mulheres que vendem revista?

– E que seria dessas mulheres se não houvesse o equipamento gráfico das revistas? Cleópatra, coitada! não saboreou em vida a glória de aparecer em todas as bancas de jornaleiro do mundo…

– Vamos folhear?

– A primeira página é uma foto de guerra. Guerra também vende?

– Mulher vende, guerra vende, que é que não vende?

– Horrível esse corpo aqui em primeiro plano e o braço lá adiante... e os miolos espalhados... 

– Você preferia não ver. Mas os miolos e o braço estão mesmo separados do corpo, não é mentira do fotógrafo.

– Eu sei. Mas estou na minha casa, os miolos desse rapaz estouraram lá longe, na Ásia, meus olhos não alcançam essa distância, porque trazem esses miolos para dentro de minha casa?

– A distância acabou. Todo mundo está em toda parte. A primeira página?

– Mais guerra, mais pedaços de gente, e gente procurando salvar o que ainda está vivo entre os pedaços. Não seria mais simples evitar que se despedaçassem? Esta velha chorando, numa careta... Diante do menininho nu, de barriguinha furada, na terra. São duas, três, quatro, cinco, seis páginas de horrores.

– Pronto o horror acabou. Agora?

– Bacana, esta linha de sapatos! Já não é mais calçado. É sonho. Se não comprar todos os modelos, a gente fica frustrada.

– Ideal seria ter muitos pés para usá-los todos de uma vez.

– Carece ainda guardar tutu para o carro novo. Este anúncio me buleversa. Olha, além de música e televisão, tem cinema dentro, não precisa ir ao drive in!

– Sem dúvida. Mas não dispensa ir à piscina. Tem piscina dentro, esse modelo Canopus/2000? 

– Não pode ter tudo. Se tivesse, ficava parado, sem necessidade de correr a parte alguma.

– E então estaria redescoberta a casa de morar, com tudo dentro. E acabariam os automóveis. Aqui uma reportagem sobre o LSD. Com visão do mundo em cores que ele oferece. Igual a um metrocolor.

– Nas páginas seguintes, aposto, reportagem sobre os Rolling Stones?

– Correto. Meditando entre monges budistas, ou são os monges que aprendem com eles.

– Depois, tem Elisabeth Burton e Richard Taylor?

– Tem. Deve ser publicidade feita pelos inimigos deles.

– As certinhas?

– Claro.

– Então me dê uns milagres super do padre Palimércio, de Três Caixas, por enviado especial.

– Estão aqui. Com os aleijados, os mongólicos, os leprosos, todos curados.

– Vire a página. Quero mulheres.

– De pernas abertas, no alto da torre da igreja barroca, oferecendo malha?

– Isso. E dentro da geladeira, nenhuma? 

– Ei-la. De bota e capote, entre saladas, sorvetes, fiambres... Prepare-se.

– Já sei. Nas páginas seguintes, fome na Índia. 

– Errou. No norte de Minas, depois das enchentes.

– Mas no Nordeste…

– No Nordeste está resolvido. Quatro, oito, 12 – espere aí – 16, 20 páginas coloridas mostrando o que o governo fez por lá. Com esses canais, esses tratores, esses verdes, esses ministros inspecionando, não há mais nenhum nordestino miserável. A fotografia não mente, você disse.

– E que mais?

– Mais mulheres, umbigos, sutiãs... 

– Ainda se usam?

– Por que não? O corpo está cada vez mais na moda, é preciso adorná-lo.

– Como é bom ler revista, folhear o mundo, guerra inclusive, nas páginas da revista!

carlos-drummond-de-andrade
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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