As casas são navios que, enquanto mergulhamos no sono, levantam âncora para a travessia da noite. A imagem é de André Gide, mas qualquer um pode recriá-la na solidão do quarto. Mesmo antes de cerrarmos os olhos, a casa navega. Sentimos a flutuação silenciosa, e nos deixamos ir ao embalo desse deslocamento surdo, sobre águas oleosas, invisíveis. No dia seguinte, tudo estará no mesmo lugar.

Tudo iria bem, não fosse esse sopro que faz estremecer levemente um galho de árvore e deposita uma primeira folha sobre o nosso rosto horizontal. Vem com ela um cheiro ou sabor de poeira, pois nessa fase de dissolução da consciência, paladar e olfato já se confundiram em percepção confusa, e não sabemos classificar a sensação. De qualquer modo, não é brisa tímida, que se detém um instante e se anula; é o vento organizado, que pretende conduzir as árvores para o cruzeiro noturno. Os troncos recusam e ele, de mau, os desfolha. Pela janela aberta um pouco de árvore e de luta vem depositar-se na cama.

O corpo a corpo com as amendoeiras se ativa, e temos de fechar a janela, para que o tropel do combate não se instale em nosso peito. A escuridão nos defende, mas pela frincha das persianas começa a filtrar-se um rumor diverso: o vento é irado e triste, silva mais agudo, e na madeira e no ar se esboçam ranhuras de pânico.

Não adiantou a providência; lá fora, portas e janelas estalam em várias direções. Também as casas foram atacadas; prédios desprevenidos ou indefesos, que ainda não acabaram de ser construídos, navegam sem equipagem. Tornam-se laboratórios de ecos, fábricas de gritos, com esquadrias em alvoroço. Há uma porta bêbada, no centro da noite, batendo espetacularmente contra o marco, empenhada em abafar, sozinha, a bulha do vento, mas pelotões agressores investem numa salva de injúrias e arrancam-na das dobradiças, num último estrondo.

E é o saque. A lingerie dos terraços vem para a rua, entre vasos e palmas de São Jorge, com outros objetos disparatados que foi possível subtrair aos interiores mal defendidos. Coisas cirandam no espaço, chocam-se contra postes, e, como vento sabe furtar mas não sabe recolher, acabam dispersas no chão, despojos largados tanto pelo vencido como pelo vencedor.

É a natureza roendo os bens do homem, divertindo-se em assustá-lo no escuro, convocando velhos medos, modelando fantasmas novos. Deitamo-nos tão seguros de nossa estabilidade em um mundo a que presidiam a lei, o costume e a técnica, nutríamos tamanha confiança nos materiais de construção e na ordem dos elementos, e bastou que a massa de ar se deslocasse de maneira abrupta para que nossa segurança e mesmo nossa vida se vissem ameaçadas por obscuro inimigo, a que nos submetemos. Pois não há outra coisa a fazer senão esperar que o furacão amaine sua cólera, depois de derrubar, aqui o telhado do templo evangélico, mais adiante a lona do circo, ferindo, mutilando, assustando. Perdemos o sono e o sentimento de orgulhosa integração na cidade, que toda ela curva a espinha sob essa visita errante, que brinca de assombração, desabamento e pavor. Já não somos donos da terra, apenas seres acuados no quarto de dormir, sem possibilidade de evasão. E há no vento, mais do que ameaça que talvez não se cumpra, uma zombaria ruidosa, ávida de desmoralizar-nos.

Na manhã seguinte, o jornal fala de ciclones longínquos, que destruíram povoações inteiras, espalhando desolação e luto. Mas o nosso susto sem consequências, dentro de casa, impressionou mais.

carlos-drummond-de-andrade
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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